Educação midiática para além da notícia e contra a exploração do medo

Publicado por Sinepe/PR em

No Encontro Internacional de Educação Midiática, a professora Renee Hobbs, referência em alfabetização midiática, traz novos caminhos para combater a desinformação e o extremismo

Apoiar estudantes no combate à desinformação, em um contexto no qual as estruturas que sustentam as principais plataformas sabem o que os usuários gostam, o que consomem com mais frequência e o que lhes causa medo, coloca educadores diante de uma tarefa desafiadora.

Este foi um dos temas debatidos durante o Encontro Internacional de Educação Midiática, na última quinta-feira, 25. Promovido pelo Instituto Palavra Aberta, embaixada e consulados dos Estados Unidos no Brasil e ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), o evento reuniu em São Paulo (SP) especialistas internacionais para conversar sobre alfabetização digital e midiática. Entre os convidados, estava Renee Hobbs, professora da Universidade de Rhode Island (EUA), referência no estudo desses temas.

Para ela, o momento atual exige que o trabalho não se limite apenas à verificação da veracidade das notícias, mas também busque mostrar como a propaganda e os algoritmos influenciam as decisões que tomamos todos os dias. Ela também destaca a evolução do tema no Brasil.

Renee destacou semelhanças entre o comportamento dos brasileiros e dos norte-americanos, seja em relação às falsas teorias sobre a vacinação durante a pandemia de Covid-19, seja na invasão ao Congresso brasileiro em 8 de janeiro – eventos que replicaram o que ocorreu nos Estados Unidos.

O ano de 2023, segundo ela, também marca um ponto importante em sua carreira como professora. Pela primeira vez, suas turmas são compostas por estudantes de graduação que não vivenciaram o ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e sabem do fato apenas pela mídia. O 11 de setembro de 2001 é tratado por ela como início da criação do estado de vigilância

“Os americanos perderam sua privacidade e o estado de vigilância começou a funcionar após o 11 de setembro. Passamos a considerar os muçulmanos em cidadãos de segunda classe, de terceira classe. Havia muito ódio e raiva, e eles foram vítimas de um terrível preconceito. E então vieram as mentiras do nosso governo sobre o ataque ao Iraque e as justificativas para entrar no Afeganistão. Duas guerras travadas com muitos especialistas aparecendo na TV e nos jornais, dando todas as razões pelas quais tínhamos que ir para a guerra, pelas quais tínhamos que combater o terrorismo”, descreve.

Como explicar a exploração do medo e a desinformação?
Na sequência, ela retomou o conceito de extremismo. Segundo o site K-12 School Shooting Database, até maio, os Estados Unidos já superaram o total de ocorrências com armas em escolas registrado em todo o ano de 2022. Com 384 registros, este ano terá, de longe, o recorde. E o Brasil, como mencionou a professora no começo, também é influenciado. Dados recentes do Instituto Sou da Paz mostram que os massacres aumentaram em número e capacidade letal: nos últimos 21 anos, o país registrou 24 casos que deixaram 137 vítimas: 45 fatais e 92 não fatais.

Tanto no caso dos ataques às escolas quanto na invasão de prédios públicos, Renee vê uma semelhança. “É um exemplo assustador de como a falta de confiança em nossas instituições tem gerado tanto medo.”

Mesmo sendo alguém que estuda o campo de educação midiática há muito tempo, Renee admite que existe dificuldade para definir o que é desinformação. “Hoje em dia, verificar fatos por si só é inútil diante da avalanche de desinformação. Ainda há o problema de definir o que é desinformação.”

Segundo Renee, uma boa definição sobre o fenômeno vem de Gavin Wilde, pesquisador do programa de tecnologia e relações internacionais do Carnegie Endowment for International Peace, nos Estados Unidos. “A desinformação pode ser bem descrita como um ‘problema complexo’: algo profundamente envolvido com outros problemas sistêmicos, nos quais as relações de causa e efeito são mal compreendidas e onde as intervenções para corrigir um aspecto prejudicial criam efeitos colaterais indesejados em outros lugares.”

No ambiente online, é preciso olhar para o montante investido em informação e comparar com o tamanho do mercado de publicidade digital. As novas ferramentas de inteligência artificial devem receber esse ano aporte de US$ 11 bilhões, algo que Renee chama de insignificante em comparação com os US$ 567 bilhões gastos em 2022 em publicidade digital.

A maneira usada para impactar usuários pode obedecer a “padrões obscuros” e levar o usuário a um caminho diferente daquele considerado normal, com todo o tipo de artimanha para evitar um descadastro, por exemplo. Do lado considerado “honesto”, as estratégias também são infinitas: influenciadores, publicidade personalizada, conteúdo patrocinado, geolocalização, segmentação e persuasão. “Precisamos entender mais sobre isso para sermos educadores midiáticos. Eles (designers e programadores) precisam entender mais sobre educação. E nós, sobre personalização via algoritmos.”

Outros temas que Renee menciona têm a ver diretamente com o debate corrente em redes sociais, tais como memes e cultura do cancelamento. “Precisamos aprender mais sobre a cultura do cancelamento e como a vergonha e a culpa criam humilhação, raiva, ressentimento, ódio e violência. Precisamos saber mais sobre isso e sobre os sistemas de teorias da conspiração. Na verdade, precisamos entender que esse ecossistema, essa economia da atenção, é alimentada pelo ódio e suas consequências estão por toda parte”, avalia.

Breve histórico da educação midiática
Para mostrar como a educação midiática está sempre mudando e interagindo com os meios e modos de consumo de mídia, a professora traçou uma breve linha do tempo. Nos Estados Unidos, segundo Renee, a educação midiática remonta aos anos 1970, com foco na prevenção da violência e do abuso de drogas. Nos anos 1990, passou a enfatizar a responsabilidade de fazer escolhas conscientes à medida que a televisão a cabo permitiu o acesso a centenas de canais.

Em seguida, o foco se voltou para a alfabetização em informação, que evoluiu para a alfabetização em notícias à medida que o modelo de negócios do jornalismo tradicional estava desaparecendo. Atualmente, vivemos o ciclo da alfabetização em algoritmos.

No entanto, é crucial que educadores busquem se aproximar dessa discussão tecnológica porque é ali que o radicalismo é nutrido. A professora mencionou o trabalho de Elizabeth Thoman, fundadora e diretora do Center for Media Literacy em Los Angeles, que disse: “Renee, precisamos entender que a alfabetização midiática é uma ferramenta poderosa para a prevenção da violência. Podemos reduzir os danos causados pela violência na mídia se, em primeiro lugar, reduzirmos a exposição à violência na mídia”.

Pontos a serem considerados pela alfabetização midiática

1 – Reduzir a exposição à violência na mídia;
2- Mudar o impacto das imagens violentas que são vistas’;
3- Identificar e explorar tudo o que contribui para a violência nos meios de comunicação;
4- Descobrir e desafiar os fatores culturais, econômicos e políticos que perpetuam a violência na mídia’;
5- Quebrar o ciclo de culpa e promover um debate público informado e racional.

A partir dessa abordagem, é possível pensar em despolarizar sociedade, avalia. “Uma coisa interessante sobre a alfabetização midiática e a razão pela qual estamos todos aqui reunidos é que reconhecemos que a educação midiática protege e fortalece direitos. Isso nos ajuda a enfrentar os danos de viver nesta cultura midiática e também nos capacita a sermos os melhores seres humanos que podemos ser, mais criativos, generosos, amorosos e conectados.”

Análise da propaganda

“No Brasil e nos Estados Unidos, a propaganda e outros gêneros persuasivos raramente são examinados ou analisados nas escolas, por mais que as tecnologias persuasivas das quais acabei de falar influenciem as emoções, atitudes e as crenças das pessoas”, aponta Renee.

Não é difícil aprender a reconhecer a propaganda, segundo a pesquisadora. “Preste atenção quando as mensagens ativam emoções fortes ao responderem às suas esperanças, medos e sonhos mais profundos. Quando elas simplificam a informação, e especialmente quando atacam oponentes. O ‘nós contra eles’ pode ser propaganda”.

Ela conta ainda que, ao lado de seus alunos, explorou em sala de aula tópicos que podem ser levados mais a sério em universidades: pesar o terrorismo como propaganda, a propaganda na educação, patriotismo e o nacionalismo pelas lentes da propaganda, as teorias da conspiração, a propaganda eleitoral, a propaganda no entretenimento e até mesmo a arte e o ativismo como propaganda.

“O engraçado, curioso e bonito sobre a propaganda é que ela é usada para romper o consenso social. A propaganda pode ser usada para polarizar. A propaganda pode transformar uma questão resolvida em uma controvérsia aberta. Isso está acontecendo agora nos Estados Unidos. O direito ao aborto e à saúde reprodutiva eram vistos como uma questão resolvida. E tornaram-se controvérsia por meio de propaganda.”

Conversas no mesmo nível
Renee compartilhou os resultados do programa “Courageous Rhode Island” (“Conversas Corajosas em Rhode Island”), que busca prevenir a violência e o radicalismo por meio de conversas online realizadas a cada duas semanas, envolvendo a comunidade.

O projeto, que recebe financiamento do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, reconhece que o extremismo doméstico, o terrorismo local, é o maior risco para a sociedade.

Renee acredita que o projeto está desenvolvendo habilidades de educação midiática que serão úteis ao longo da vida, não apenas como um projeto escolar, mas como cidadãos engajados em promover a democracia de forma autônoma.

Mesmo reconhecendo que nem sempre o grupo concorda entre si, a professora prefere ressaltar o quanto estão se esforçando para não desvalorizar opiniões alheias e evitar se posicionar como superiores. Ao ouvir melhor, elas encontram pontos em comum e conseguem restabelecer uma convivência democrática.

Por: Escolas Exponenciais