Aprendizagem híbrida: ‘Não basta que o professor saiba usar a tecnologia’, afirma educador

Publicado por Sinepe/PR em

Paulo Blikstein, professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, analisa os desafios e os caminhos para esse tipo de atividade no país

Para regulamentar a aprendizagem híbrida, que une atividades presenciais e remotas, o Brasil precisa antes universalizar o acesso à internet e formar professores para além do simples uso das ferramentas. É o que afirma Paulo Blikstein, professor da Universidade de Columbia (EUA) e um dos autores do relatório “Aprendizagem híbrida? Orientações para regulamentação e adoção com qualidade, equidade e inclusão”. O documento, fruto de uma parceria entre Dados para um Debate Democrático na Educação, Transformative Learning Technologies Lab, Fundação Telefônica Vivo e Lemann Center, foi lançado em junho.

Como podemos definir a aprendizagem híbrida?
A definição mais comum é aquela em que o estudante tem atividades presenciais na escola e atividades à distância em casa. Esses dois tipos de atividades são combinados e articulados pelos professores. Há outras definições que colocam a aprendizagem híbrida como algo mais personalizado, mais “mão na massa”, mas não há base científica para afirmar isso.

Há quem ache que a aprendizagem híbrida pode “salvar” a educação. O que pensa sobre isso?
Se estivéssemos na Finlândia, onde 91% dos alunos e das alunas têm computador em casa e internet de alta velocidade, ou em outros países como Canadá, em que as crianças têm infraestrutura, faria mais sentido pensar em educação híbrida. Mas, no contexto atual do Brasil, é irresponsável começarmos a falar do tema, uma vez que não existe infraestrutura para universalizar esse tipo de aprendizagem.

Por quê?
Em alguns estados, menos da metade das casas tem internet banda larga. Além disso, apenas 40% das crianças têm computador em casa, ou seja, elas têm que fazer tudo pelo celular.

O que a educação híbrida pode trazer de diferente?
Uma experiência realmente diferente seria, por exemplo, orientar a criança a fazer um experimento científico, entrevistar pessoas em sua comunidade, mapear as ruas da sua região ou pesquisar sobre a história daquele lugar. Há uma série de atividades que podem ser feitas de forma híbrida e que são diferentes da aula tradicional. Vimos muitas escolas vendendo a aprendizagem híbrida como uma algo “moderno” e, quando íamos observar o que estavam fazendo, era a atividade mais tradicional do mundo. Só que piorada, pois nem presencial era.

De que forma a aprendizagem híbrida deve ser adotada?
Qualquer forma de educação híbrida necessita de infraestrutura. Se não temos o mínimo de conectividade e equipamentos para as crianças usarem em casa, não faz sentido começar essa discussão. Se há 20% ou 30% de crianças impossibilitadas de participar, já não funciona.

Para quais etapas da educação ela seria mais indicada?
Quanto mais velhos forem os alunos, maiores são as chances de sucesso. Sabemos que, na pandemia, as crianças do ensino fundamental tiveram uma enorme dificuldade de acompanhar as aulas online por não terem ainda habilidades cognitivas de disciplina e de automonitoramento. A prova disso é que hoje temos uma tragédia de analfabetismo e de desempenho matemático.

Que experiências foram bem-sucedidas em outros países?
Nenhuma experiência de educação híbrida foi um sucesso absoluto por conta da necessidade emergencial da pandemia. Além disso, o Brasil tem suas próprias especificidades. Uma experiência que foi boa em outro país não será necessariamente boa aqui. Mas tivemos um bom exemplo no Uruguai, que tem um plano nacional de um computador por aluno, com uma infraestrutura desde 2005. Com a pandemia, a logística de distribuição de equipamentos e softwares foi muito mais suave.

Como formar professores para a educação híbrida?
Para fazer a integração entre o remoto e o presencial, não basta que o professor saiba usar a tecnologia. Isso é importante, mas é uma parte pequena. É preciso formá-lo como um “designer de experiência de aprendizagem”, para que entenda o que é mais apropriado para uma aula presencial e o que pode ser feito em uma atividade remota. Por isso a formação é tão importante. Ver as pessoas falando de formação para a educação híbrida com foco em competências digitais, como aprender a usar internet,é preocupante.

Por que a educação híbrida deve ser regulamentada?
A regulamentação vai evitar excessos e abusos. Não pode haver substituição de hora-aula na escola por aula-aula remota, a não ser em casos de emergência. É preciso ter regulamentações para impedir que se vá colocando tudo no digital e as aulas sejam precarizadas. De outra forma, um dia acordamos e percebemos que há crianças de 12 anos passando metade da semana em casa. Mas também achamos que não é para ter um excesso de regulação que impeça a criatividade das escolas, dos professores e das redes de ensino.

Há alguma forma de pensar esse tipo de aprendizagem como uma ferramenta para diminuir as diferenças entre os alunos de escolas públicas e particulares, em vez de aprofundá-las?
Quando vamos a uma escola particular, uma escola de elite, vemos que os alunos têm acesso a laboratórios de ciências, salas de artes… As escolas de elite hoje investem não em educação híbrida no sentido de aula virtual no celular. Eles investem em atividades presenciais de alta intensidade e de alta complexidade, porque isso está formando jovens criativos, que resolvem problemas, que gostam de estudar e que acabam se interessando por ciências, engenharia. Precisaríamos ter isso na escola pública também, para que as diferenças não se aprofundassem. É possível fazer isso de forma híbrida? Sim, mas, de novo, não é simplesmente digitalizando a aula e mandando a criança acompanhá-la dessa forma. É preciso ter um professor que saiba desenhar um experimento científico para ser feito em casa. Um exemplo: o professor pode explicar a teoria de reações químicas em sala de aula e desenvolver um experimento para o aluno fazer em casa, com materiais de limpeza, já que a escola não tem um laboratório.

O título do relatório lançado por você e outros pesquisadores traz uma interrogação. Por que ele se chama “Aprendizagem híbrida? Orientações para regulamentação e adoção com qualidade, equidade e inclusão”?
Há uma série de empresas que querem fornecer produtos de tecnologia educacional para secretarias de educação, empresas com fins lucrativos que querem fazer da educação híbrida uma realidade irrevogável. Há um esforço de marketing para criar uma unanimidade em torno da inevitabilidade da educação híbrida. Por que as pessoas não se perguntam se a educação híbrida é boa ou não? A ideia de que ela é sucesso absoluto em todo lugar não é verdade. Então colocamos a pergunta no sentido de questionar mesmo: no Brasil, onde metade das crianças não tem acesso à internet ou computadores, faz sentido começarmos a falar em educação híbrida nesse momento?

Por: O Globo