Sociedade deve ser plural, igualitária e democrática
Para Paulo Fossati, conselheiro e vice-presidente da Câmara do Ensino Superior no CNE, o diálogo constante fortalece a democracia participativa
O Brasil está discutindo o Plano Nacional de Educação (PNE) para o próximo decênio, o Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG), novos indicadores para Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e o novo Ensino Médio. “É o ano da virada”, diz Irmão Paulo Fossatti, conselheiro e vice-presidente da Câmara do Ensino Superior no Conselho Nacional de Educação (CNE), pesquisador produtividade Pq2, consultor ad hoc do CNPq, professor e pesquisador do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade La Salle.
Por 13 anos – até 2022 – foi reitor da Universidade La Salle, que pertence à rede homônima, presente em 80 países, reunindo um milhão de estudantes. No Brasil, a La Salle atua da educação básica à superior. São 36 escolas em 11 estados, quatro delas gratuitas. No ensino superior, são duas faculdades, dois centros universitários e a Universidade La Salle, totalizando cerca de 20 mil alunos.
Fossatti conta que terminou recentemente sua atuação como um dos revisores do documento final da Conferência Nacional de Educação (Conae), junto ao MEC. Esse documento será entregue ao presidente Lula, que o direcionará ao Congresso Nacional. Lá, as contribuições do Conae se juntarão ao relatório da Comissão de Educação e Justiça do Senado Federal, após realização de mais de dez audiências públicas, e ao da Câmara dos Deputados. Sena- dores e deputados transformarão o PNE em lei e, para isso, têm prazo até julho. Há questões que requerem mais atenção, comentadas nesta entrevista.
“A grande convocação é para que a sociedade fique atenta aos debates e consultas públicas, às sessões abertas na plenária da Câmara dos Deputados e do Senado para que possamos interagir com eles naquelas questões que ainda podem ter ajustes.” Ele também aborda nesta entrevista a importância do PNPG e da necessidade premente do Brasil de conquistar um PNE que não fique à mercê de governos. “É preciso uma política de Estado – e não de governo – que envolva todos os atores. Nenhum país desenvolvido fez a virada de chave sem envolver a sociedade, o mercado produtivo, as prefeituras, estados e federação.”
Quais foram os principais desafios e as conquistas nos 13 anos de sua gestão na Universidade La Salle?
O século 21 é marcado por rápidas e profundas mudanças, nos colocando diante de uma série de eventos inesperados que demandaram uma gestão ágil, resultando em conquistas significativas. Entre os principais desafios e realizações de nossa gestão, destacam-se a formação integral das pessoas em suas competências humanas e profissionais, com foco na humanização, resultados e pedagogia empreendedora alinhada com o legado do fundador La Salle, que revolucionou a educação de seu tempo ao enfrentar desafios reais.
O trabalho conjunto de educadores nos levou à conquista do status de universidade em 2017. Essa transição exigiu um novo modelo de gestão por resultados, avaliado em todas as dimensões pelo MEC, incluindo estrutura, infraestrutura, plano de desenvolvimento institucional e projetos pedagógicos revistos com a participação da comunidade, ex-alunos e mercado produtivo, além da qualificação do corpo docente e técnico-administrativo.
Analisamos os cenários da educação superior, e ultrapassamos fronteiras geográficas, no momento em que obtivemos autorização para oferecer educação a distância (EAD). Essa autorização veio acompanhada de investimentos em formação digital, desenvolvimento de um Ambiente Virtual de Aprendizagem próprio e elaboração de materiais didáticos exclusivos. Essa conquista permitiu expandir nossa presença para vários estados do Brasil, com 70 polos de educação a distância na atualidade.
Outra conquista recai sobre a diversidade do portfólio de cursos em todas as áreas do conhecimento, aliada à qualidade do ensino. Por fim, o excelente conceito institucional nos colocou entre as 10 melhores universidades privadas e comunitárias do Brasil, conforme avaliação do MEC.
Qual sua perspectiva acerca da ciência hoje no Brasil?
Minha perspectiva é promissora. Nos últimos 20 anos, o Brasil alcançou um destaque significativo na produção científica, investindo na formação de mestres e doutores, alinhando-se com as metas estabelecidas no PNE 2014-2024. Entretanto, estamos à beira da aprovação do novo Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG). Embora o atual tenha cumprido seu papel, colocando o Brasil entre os principais produtores mundiais de ciência, tornou-se evidente que ele não atende mais às demandas da sociedade pós-pandemia, da era da inteligência artificial e do mercado 5.0.
Quais os desafios dos programas de pós–graduação para a próxima década e como o PNPG vai contemplá-los?
São seis desafios: aumentar o percentual de mestres e doutores, garantir condições adequadas de acesso, garantir a permanência e a conclusão dos cursos, ampliar a diversidade e a inclusão dos estudantes, reduzir as diferenças de oferta da pós-graduação e melhorar as interações com o mundo do trabalho.
O novo PNPG deve se basear nos princípios da interação com a sociedade, estabelecendo vínculos com o mercado produtivo para impulsionar o crescimento econômico e promover o desenvolvimento social em um contexto de diversidade e pluralidade.
É fundamental revisar a agenda de financiamento em colaboração com as fundações de amparo à pesquisa, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e outros órgãos de fomento, alinhando interesses e prioridades nacionais.
É necessário também revitalizar o conceito de trabalho em rede, expandindo e consolidando iniciativas que promovam a ciência, a pesquisa e o desenvolvimento em todas as áreas do conhecimento, integrando-as com o mercado produtivo para transformar resultados acadêmicos em avanços econômicos reais, ou seja, é necessário transformar “paper” em “PIB”.
O redesenho dos Programas de Pós-Graduação (PPG) – mestrado e doutorado – deve ser orientado para uma política indutora de pesquisas em áreas estratégicas para o país, em diálogo com o governo, o setor produtivo e a sociedade. Essa política precisa garantir maior autonomia para os PPG, exigindo resultados concretos que tragam soluções escaláveis para os desafios sociais mais urgentes.
Por fim, o Brasil deve implementar uma política robusta de valorização e retenção de seus pesquisadores, proporcionando condições de trabalho adequadas e financiamento suficiente, integrando a pesquisa com o mercado e a sociedade produtiva e desencorajando a fuga de talentos.
Em qual situação está a elaboração do PNPG?
Simultaneamente à consulta pública, a Capes convidou os órgãos públicos do governo federal para contribuírem na proposta. As sugestões estão sendo analisadas e consolidadas na versão final para aprovação do Conselho Superior da Capes. A previsão é que o PNPG seja lançado a qualquer momento. Na sequência, será elaborado um plano operacional para a sua execução.
Qual seu balanço acerca do PNE 2014-2024?
Embora o Brasil tenha feito avanços notáveis historicamente, é inegável que a maioria das metas não atingiu o esperado. Temos capacidade técnica para alcançar melhores resultados, porém, é crucial superar a lacuna entre as condições técnicas e a vontade política real de priorizar seriamente a educação num país continental.
O Brasil enfrenta um sério problema ao tratar a educação como um plano de governo temporário, em vez de uma política de Estado contínua. O PNE 2014-2024 sofreu as consequências dessa mentalidade brasileira. É imperativo que tratemos o PNE como uma política de Estado que garanta educação como um direito de todos, com qualidade social. Muitas metas acabaram não sendo alcançadas e, infelizmente, muitos dos problemas não resolvidos precisarão ser retomados no novo PNE.
Esse é um sintoma de país que não prioriza a educação, o que nos coloca entre os países com os piores índices no Pisa e na OCDE. Tal realidade destaca a urgência de abordar nossas chagas educacionais, a exemplo do iminente apagão de professores e do baixo desempenho escolar.
Outros problemas, como redução da evasão escolar, valorização dos profissionais da educação, educação ambiental e biodiversidade, redução das desigualdades, inclusão e diversidade, estrutura e infraestrutura educacional, além do financiamento para a educação, devem ser considerados no novo PNE.
Por fim, o novo PNE deve servir como um instrumento para a gestão da educação, envolvendo toda a sociedade por um Pacto Educativo Nacional. Neste pacto é essencial engajar todos os municípios, estados e a federação.
Como estão as discussões, atualmente, no âmbito do CNE, acerca do novo PNE e suas metas para o próximo decênio?
O novo PNE traz novidades em relação ao atual, buscando atender a um mundo em constante transformação, com a ascensão de tecnologias como ChatGPT, IA, e a necessidade de competências verdes, digitais e empreendedoras. Nesse cenário o CNE está profundamente engajado na avaliação do cumprimento das metas do PNE. Além disso, ele facilita instâncias de debate e teve um papel ativo na Conferência Nacional de Educação (Conae), cujo tema central foi o PNE. O CNE também tem assento no Fórum Nacional de Educação, uma instância reflexiva, propositiva e avaliativa do PNE.
No atual momento, o CNE continua o diálogo com as Comissões de Educação do Parlamento brasileiro, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, que são as instâncias responsáveis por aprovar o novo PNE. Além de revisitar as metas à luz do momento atual, o novo PNE deverá abordar questões ambientais, inovação, empreendedorismo, inteligência artificial, escola em tempo integral e formação técnico-profissional.
Contudo, é fundamental que o novo PNE seja uma política de Estado, uma vez que irá transcender, pelo menos, três governos.
Quais as principais questões que ainda podem demandar ajustes nas metas do PNE, em meio às discussões no Congresso Nacional?
Por exemplo, fazer um bom e estreito diálogo para garantir uma boa política de formação de professores, de remuneração docente. No Brasil, só na educação pública há um déficit de mais de 410 mil professores.
A educação profissional é outro debate. O Brasil tem hoje só 11% dos jovens do ensino médio e pós-médio que buscam a educação técnico-profissionalizante. Em consequência, na faixa dos 18 aos 29 anos, temos ao redor de nove milhões de jovens que não estudam nem trabalham. Qual será a contribuição deles para
a economia do país? Como esses jovens de hoje, daqui a vinte anos, vão cuidar dos seus pais na velhice? É uma geração que estamos perdendo. Na Alemanha, mais de 60% dos jovens fazem educação técnico-profissionalizante e isso lhes garante emprego – e não é subemprego, é um trabalho que oferece dignidade, a pessoa sustenta a família, e pode depois fazer a faculdade.
O Brasil está com o ranço de que educação técnico-profissionalizante é para algo braçal, não é. Uma boa educação técnico-profissionalizante ajudará a desenvolver competências técnicas e humanas, as chamadas hard e soft skills, ou seja, o estudante também ganhará competências para a vida.
Outra grande discussão que está no PNE é a questão da educação a distância. O problema não é o EAD. Precisamos centrar a discussão numa educação de qualidade. Há educação presencial que também é joio no meio do trigo. Não podemos nos perder na discussão de que EAD é uma modalidade ruim e a presencial é boa. Qualquer modalidade com um bom projeto pedagógico, um bom ambiente virtual de aprendizagem, bons laboratórios, bons professores poderão dar respostas significativas para o nosso tempo, para a sociedade do século 21, para a indústria e o mercado 5.0.
Falamos dos nove milhões de jovens, mas temos 74 milhões de pessoas em situação de educação de jovens e adultos (EJA). Se o Brasil levasse a sério o ensino médio ou o técnico-profissionalizante, poderíamos recuperar grande percentual desses 74 milhões para tirar do subemprego, do salário mínimo e dar dignidade a todos. Então, temos de centrar a discussão na qualidade do projeto pedagógico e não na modalidade.
Mais uma questão importante, que está no documento da Conae e para a qual os parlamentares devem atentar, abrange todas as competências verdes, ambientais. O mundo mudou muito no pós-pandemia. Estamos à beira do colapso do planeta Terra e da biodiversidade. A questão é que mundo vamos deixar para nossos netos e bisnetos. A educação precisa refletir sobre isso. E, junto, se voltar às questões da diversidade e da equidade nesse mundo plural. O documento da Conae traz para a discussão os indígenas, os quilombolas, os negros, as crianças, as mulheres, a educação no campo.
A construção das metas encontra barreiras?
É crucial que o Brasil leve a sério a questão da educação. A história dos países desenvolvidos mostra que as principais barreiras são de natureza política, e não técnica. Infelizmente, a educação para todos, e de qualidade, nunca foi uma prioridade para os governos brasileiros.
Apenas através da educação poderemos superar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e alcançar a sustentabilidade econômica, financeira, ambiental e social. Podemos aprender essa lição com países desenvolvidos como Finlândia, Coreia do Sul, Japão, entre outros.
Portanto, mais do que decisões técnicas, é necessário ter vontade política para colocar em prática uma política de Estado na área da educação, que esteja à altura da grandeza do nosso país.
Embora vivamos em um Estado democrático, o Brasil ainda não é um país participativo o suficiente. A promoção do diálogo é fundamental para fortalecer nossa democracia participativa. O governo liderado por Lula tem como prioridade a agenda do diálogo. O ministro Camilo Santana orienta o Ministério da Educação e suas instituições, seguindo o exemplo do CNE, a manter um diálogo constante para garantir a inclusão das diversas vozes na promoção do exercício pleno da democracia participativa.
Essa realidade se reflete na busca por uma educação de qualidade acessível a todos, visando uma sociedade mais plural, igualitária, democrática e participativa.
Por: Revista Ensino Superior