Tragédia climática no Rio Grande do Sul reconfigura o papel das escolas

Publicado por Sinepe/PR em

Enchentes transformaram escolas em abrigos, com gestores e professores trabalhando como voluntários e salas de aulas servindo como quartos para famílias que perderam suas casas

Maio de 2024 entrará para os livros de história do país como a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Mas o cenário de destruição ainda não faz parte do passado: é vivido no tempo presente. Cidades inteiras ficaram submersas por conta das enchentes, causando a evacuação da população. Quase 90% das cidades gaúchas foram afetadas, em estado de calamidade pública ou em situação de emergência.

Em meio à devastação, as aulas foram suspensas. Escolas de todo o estado somam-se a ginásios, igrejas e clubes para servir de abrigo temporário a milhares de pessoas fora de suas casas. Mais de meio milhão de gaúchos estão desalojados, conforme o boletim da Defesa Civil do último domingo, 2 de junho, além das centenas de óbitos, feridos e desaparecidos.

Só em Porto Alegre, o número chegou a 14,6 mil desabrigados em 13 de maio. A capital gaúcha ficou praticamente isolada, seja por vias aéreas (o Aeroporto Internacional Salgado Filho segue interditado até o Natal) ou terrestres, com a rodoviária alagada, pontes e rodovias bloqueadas.

“Toda vez que chovia, meu falecido avô falava da enchente de 1941 que havia presenciado. Contava que Porto Alegre tinha ficado isolada, sem luz e sem água, chegou a faltar comida. Nunca imaginei que veria uma catástrofe maior”, narra a professora Luciane Puntel.

A escola estadual Luciana de Abreu, onde Luciane dá aulas para o primeiro ano do ensino fundamental, é uma das 54 estaduais que foram transformadas em abrigos no mês de maio (na virada para junho, ainda são 42 da rede estadual). Em comum, todas adaptaram suas estruturas para uma nova rotina 24 horas por dia, sete dias por semana. As salas de aula viraram quartos coletivos, os banheiros receberam chuveiros e cartazes com a escala de horários de banho, os refeitórios servem desde o café da manhã até o jantar.

Além de agora serem a casa temporária para muita gente, as escolas gaúchas tiveram outros papéis importantes no auge da tragédia, como funcionar como centro de produção de marmitas, prestar assistência à comunidade escolar atingida pelas enchentes, acolher alunos e suas famílias. O Porvir conta algumas destas histórias direto de Porto Alegre e de Canoas, cidade localizada na região metropolitana.

Em meio a essas histórias, a rede municipal de Porto Alegre anunciou a saída do secretário de educação José Paulo da Rosa. Trata-se da terceira troca durante a gestão do prefeito Sebastião Melo. Desde 20 de maio, a pasta conta com um interino.

“A escola é a casa dessas pessoas, ainda que temporária”

Dirigir da capital até Canoas, na região metropolitana, é trajeto de 20 a 30 minutos em dias normais. Agora, pode levar horas. Os alagamentos causaram bloqueio dos acessos, inclusive sem transporte público, como ônibus e metrô (a estação central de Porto Alegre só volta a operar em 2025). Corredores humanitários foram abertos para permitir a circulação. Nenhum táxi ou Uber estava aceitando corridas para lá ou cidades próximas como Guaíba e Eldorado do Sul, por exemplo.

Dois terços de Canoas foram inundados. Das 83 escolas municipais, 41 foram diretamente atingidas pelas enchentes. As aulas estão suspensas até 7 de junho. Nosso destino é a Escola Municipal Jacob Longoni,que tem 523 alunos matriculados. O mapa indica a localização com acesso pela rua Porto Seguro. Há um mês, este endereço é, de fato, o único porto seguro de mais de 120 pessoas que perderam seus lares ou esperam a água baixar em suas casas para retornar. No pico das chuvas, chegou a receber 210 desabrigados.

Na tarde de 3 de maio, uma sexta-feira, o diretor do colégio Marcelo Barnetche Kauer recebeu a ligação de uma colega pedindo ajuda. Estava cercada por água no condomínio onde vive com a filha no bairro Mato Grande, sem energia elétrica. Com um barco emprestado, Marcelo e outros voluntários passaram a fazer resgates na região. Perdeu a conta de quantas pessoas socorreram.

No dia seguinte, outra ligação urgente, agora da Secretaria de Educação, estabelece o uso da EMEF Jacob Longoni como abrigo. No grupo de professores do WhatsApp, o chamado para quantos braços pudessem ajudar. Em questão de horas, mesas e cadeiras foram retiradas das dez salas de aula. Enquanto alguém improvisa uma recepção para registrar quem chegará, outro verifica o estoque de alimentos. Os colchonetes das aulas de educação física se tornam as primeiras camas do pernoite.

Começam a chegar doações (roupas, comidas, colchões, pallets) e mais voluntários (vizinhos, ex-alunos, pais de alunos atuais). Chegam idosos sozinhos sem documentos e seus remédios de uso contínuo, chegam famílias inteiras com cachorros e gatos. A quadra esportiva onde Marcelo coordenou o último treino de vôlei com a gurizada um dia antes da tragédia virou abrigo dos animais de estimação. É neste espaço, agora com finalidade tão distinta, que o professor de educação física se emociona:

“Existe um momento de ruptura em que a gente para de chamar de escola e começa a chamar de centro de acolhimento. Pois é um trabalho completamente diverso do que se faz em uma escola. A sensação é de viver um outro mundo. Não enxergo meu local de trabalho como aquele de antes. A visão é completamente diferente, a responsabilidade é outra”, diz. “Temos pessoas acolhidas que perderam tudo, suas casas, seus bens, seus sonhos. Gente que lutou tanto tempo para comprar aquela casinha, agora vê tudo boiar no meio do lodo, da lama. A escola é a casa dessas pessoas, ainda que temporária. É quase uma situação de albergue, em que precisamos organizar desde horários desde banho até a lavanderia. Não é uma colônia de férias, tem bastante tristeza.”

Marcelo ressalta que o impacto causado pela tragédia climática afeta a comunidade escolar em diferentes perspectivas. “Tudo que me preocupava antes agora ficou menor, sem sombra de dúvida. Como os desentendimentos das crianças no recreio: o que era o fim da picada hoje é tão pequenininho. Queria ter que resolver aqueles B.O.s (ocorrências) de recreio de novo. Muda completamente a perspectiva.”

“Não é mais minha sala de aula, é um dormitório”

Os fatos repercutiram até no noticiário nacional. Já na primeira semana em que foram criados os abrigos no RS, houve uma série de denúncias de casos de violência, desde importunação sexual e abusos, gerando insegurança para mulheres. Rapidamente surgiram iniciativas de abrigamento exclusivo para mulheres e crianças. Um deles ganhou o nome da escola que abraçou a causa, Luciana de Abreu, em Porto Alegre. A Escola Estadual de Ensino Fundamental tem ainda um toque de sensibilidade extra, pois começou a funcionar às vésperas do Dia das Mães.

Com o apoio de mães da escola e dezenas de voluntárias, coordenado pelo Instituto E Se Fosse Você?, o local recebe 40 pessoas, carinhosamente chamadas de residentes. A residente mais velha, a vovó “xodó” da escola, está prestes a celebrar 86 anos em junho. Spoiler: vai ter festa de aniversário com bolo. A residente mais nova somava 11 dias de vida no dia 31 de maio, quando visitamos o abrigo. Manuela chegou dentro da barriga da mãe e passou a primeira semana após o nascimento na UTI. Quando recebeu alta, não saiu do colo da funcionária pública Victoria Cosner, integrante da ONG e uma das coordenadoras do Luciana de Abreu, convidada a ser madrinha da bebê. A mãe de Manu é de Eldorado do Sul, o município gaúcho mais afetado pelas cheias, com 80% dos lares devastados.

Manter o clima leve entre as residentes não é um acordo escrito, mas está presente em cada gesto. Enquanto a reportagem estava lá, encontramos uma farmacêutica distribuindo florais de uso adulto e pediátrico para melhorar o sono e bem-estar. Pouco depois, uma roda de conversa reuniu as mulheres com duas representantes da Defensoria Pública para receber orientações sobre direitos e benefícios a serem solicitados.

Mais docentes estão diariamente no abrigo trabalhando em várias frentes, como a vice-diretora da escola, Marlene Akselrud de Souza, cuidadosamente organizando as incontáveis peças na rouparia, instalada na biblioteca. Quem nos guiou pelo lar temporário, mostrando desde a sala de informática com insumos até as paredes decoradas com letras do alfabeto, foi a professora Luciane Puntel. Formada em Letras e apaixonada por alfabetização infantil, é voluntária na escola onde leciona. Em vez de passar os dias na recreação, decidiu se desafiar e pediu para trabalhar na cozinha.

“Não vejo motivo para ficar em casa assistindo noticiário, olhando redes sociais e me sentindo mal. Aqui me sinto bem ajudando todas estas pessoas, criamos um vínculo de carinho. Pedi para ajudar na cozinha porque gosto de cozinhar. Faço café, faço almoço, aprendendo a fazer em grande quantidade. A gente inventa coisas para deixar o pessoal feliz, pois ouvimos muita tristeza. Minha forma de ajudar é fazer uma comidinha gostosa. Já fiz pizza de sardinha, feijão carioquinha, agora há pouco estava fazendo panqueca.”

O momento agora é de acolhimento de quem está em sofrimento, reforça Luciane. “Aquela não é mais minha sala de aula na escola: é um dormitório para as residentes. Como educadora, tenho muitos planos para recuperar o ano letivo depois. Sobrevivemos à pandemia; nessa enchente não vai ser diferente. Inclusive eu e outros professores estamos amadurecendo projetos de como podemos e devemos ser mais sustentáveis. Que futuro meus alunos querem para o planeta? É um tema que está gritando.”

“A prioridade agora não é o ensino, é a segurança”

Na capital gaúcha, a região com mais habitantes diretamente atingidos pela inundação é o bairro Sarandi. Impossível não se comover ao ver a foto que mostra somente parte do telhado da Escola Municipal de Ensino Fundamental João Belchior Marques Goulart. Lá estudam 673 alunos do jardim A ao 9º ano. Até o fechamento desta matéria, a sede da escola ainda estava parcialmente submersa.

De carona no barco do Exército no último dia 25, o diretor da escola, Manoel José Ávila da Silva, estava com a chave do portão no bolso, na esperança de poder acessar, mesmo com água nos joelhos ou na cintura. Mas não foi possível sair da embarcação. No primeiro andar da escola, estão todas as salas de aula, a secretaria (onde estavam todos os documentos da instituição), refeitório e sala de inovação tecnológica, por exemplo, com equipamentos de informática.

Enquanto a João Goulart está interditada, os funcionários e educadores se engajaram em várias frentes para arrecadar recursos para a comunidade escolar. Alguns docentes e funcionários moram na região e também foram afetados. Uma das ações mais imediatas foi realizar a busca ativa dos alunos: os professores que não tiveram suas casas alagadas se dividiram para ir atrás dos alunos e saber a situação das famílias, se foram atingidas pelas enchentes e do que precisavam.

Um galpão cedido passou a ser central de doações, desde cestas básicas até colchões e geladeiras. Entre os desalojados estão adultos e seus filhos imigrantes venezuelanos (são 117 alunos matriculados na escola) e que viviam em área de risco de alagamentos na capital. A maioria está vivendo em abrigos temporários.

“A prioridade neste mês não era a demanda do ensino e da aprendizagem, é a segurança de todos. Não adianta ter a escola e não ter a comunidade e vice-versa”, explica a professora Marina Salva, que dá aula para o primeiro ano do ensino fundamental na João Goulart e conseguiu ir pessoalmente realizar algumas doações a alunos que ficaram desalojados. Sua casa não foi impactada, mas a de familiares e colegas sim, então a educadora passou parte do mês acolhendo quem precisou de teto.

Especialista em alfabetização, Marina é uma das 14 profissionais da Educação que se uniram ao movimento Oficinas Solidárias, criado pela pedagoga Clarissa Pereira, no qual o valor arrecadado com a venda das aulas online será destinado a um fundo de reconstrução de escolas. É com o coração apertado e cheio de memórias que Marina aguarda o momento em que todos poderão voltar à escola para avaliar o que foi destruído.

“De todas as coisas que estavam no meu armário da escola, algo que me dói perder são os blocos de evolução da escrita com as escritas dos meus alunos. Não poderemos comprar de novo ou refazer e voltar para quando eram pré-silábicos, rever o avanço de cada um, o tamanho da letra…. São registros que não temos como recuperar.”

“Ver tudo destruído é triste demais”

Também localizada no Sarandi, a Escola Municipal de Educação Básica Doutor Liberato Salzano Vieira da Cunha ficou por semanas alagada e agora entrou na fase de limpeza. A Liberato é a maior escola municipal de Porto Alegre, com 1700 alunos da educação infantil até ensino médio, Magistério e EJA (Educação de Jovens e Adultos). Como lá a água já baixou, o local também funciona como depósito temporário, estocando todos os materiais de limpeza enviados pela Secretaria de Educação para quando as escolas vizinhas puderem iniciar sua recuperação.

Na semana passada, 100 soldados do Exército foram fazer a remoção da lama e descarte de móveis e objetos deteriorados. Um único dia não foi suficiente para limpar. Todo o mobiliário em madeira, por exemplo, se perdeu, além de eletrônicos (carrinhos de Chromebooks), brinquedos, livros e todos os materiais de papelaria. Está previsto um longo período de reconstrução do espaço, conforme vistorias de engenharia já realizadas, que indicam reforma na parte elétrica, hidráulica, entre outros pontos.

“Tudo se tornou entulho, desde material pedagógico até as portas. Não se pode pensar em um retorno breve neste momento”, lamenta a diretora, Rochele Soares.

É com emoção que ela lembra da expectativa da comunidade escolar às vésperas do aniversário de 70 anos da escola. No dia 3 de maio, uma sexta-feira, estava marcado um grande jantar-baile. Devido às chuvas, a festa foi cancelada; os insumos da celebração, já comprados, foram doados ao Quilombo dos Machado, nas proximidades da escola. No dia seguinte, um sábado, o ginásio de esportes da Liberato iria virar abrigo aos desalojados do Sarandi. Mas assim que as primeiras famílias chegaram, carregando pertences, bicicletas, cachorrinhos, a água subiu rapidamente invadindo a escola.

“Nossa ideia de abrigo não chegou a durar meia hora. Saímos com água no joelho, não deu tempo de salvar quase nada”, recorda. “Voltar depois de todo esse tempo para lá e ver tudo revirado, destruído, é triste demais. O ambiente está contaminado, tudo se desmancha ao tocar. Nossa biblioteca era tão linda! Dói no coração”, lamenta Rochele.

“É preciso sensibilidade para o retorno”

Mesmo as escolas que não foram diretamente atingidas também sentem os impactos e agem para fazer o máximo possível por seus alunos. Acostumada a receber alunos diariamente para resolver dilemas, a orientadora educacional Vládia Paz, do SOE (Serviço de Orientação Educacional) da Escola Anísio Teixeira, percebe as mudanças no clima dos colegas e dos estudantes.

Localizada na Hípica, zona sul de Porto Alegre, a escola tem 1.100 alunos. Algumas áreas dos arredores alagaram, desde residências até comércios. Na primeira semana das enchentes, a escola focou em fazer marmitas (cerca de 100 por dia) para ofertar à comunidade escolar e a abrigos. Paralelamente, um grupo de professores ajudou com vaquinhas e arrecadação de doações como cestas básicas.

A Anísio Teixeira tem um brechó que gera renda extra à escola, mas em maio ficou aberto para que as famílias em necessidade pudessem buscar roupas de frio no rigoroso inverno gaúcho. Afinal, assim como na pandemia, muitas pessoas tiveram suas rendas afetadas. Estimativa da Fiergs (Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul) indica que 94,3% de toda a atividade econômica gaúcha foi afetada.

Um grupo de educadores da escola cursou uma formação online de Pedagogia da Emergência para poder colaborar na volta às aulas. “É preciso sensibilidade no retorno. Não se pode retornar de um ponto anterior, ‘onde é que nós paramos antes da chuva’, nem chegar perguntando diretamente sobre o ocorrido, para evitar revitimização”, explica Vládia.

A escola propôs uma nova organização nas primeiras aulas de acolhimento, como um café coletivo, uma dinâmica de abraço e receber a gurizada com escuta ativa, sem julgamentos. Muitos então espontaneamente contaram que ajudaram nos resgates ou foram eles próprios resgatados. A ansiedade está alta, percebe a orientadora educacional, que indica aos colegas de todo o Rio Grande do Sul “mais ouvir do que perguntar”:

“Temos a tendência de querer resolver os problemas, encaminhar soluções, mas não é o caminho. O papel da escola sempre foi acolher, e neste momento tão sensível temos este papel mais importante ainda.”

Por: Porvir