Por que e como utilizar narrativas indígenas na alfabetização?

Publicado por Sinepe/PR em

Abordagem diversifica os tipos de textos trabalhados, permite resgatar as contribuições dos povos originários e amplia o repertório e a visão de mundo das crianças

Qual língua se fala no Brasil? Se “português” é a única resposta que vem à sua mente é porque o processo de colonização e o decorrente apagamento histórico dos povos originários silenciaram, durante séculos, as centenas de línguas indígenas faladas no país. Elas são 274, segundo dados de 2010 do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Foi somente com a Constituição Federal de 1988 que os povos indígenas tiveram assegurado o direito às suas línguas, inclusive no âmbito escolar. E esperariam ainda mais dez anos para, em 1998, o Ministério da Educação (MEC) aprovar o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Esse documento estabeleceu as diretrizes para o ensino e a aprendizagem da Educação indígena de forma a preservar e valorizar sua diversidade cultural e linguística.

O referencial assegurou a chamada alfabetização intercultural, isto é, o direito das pessoas indígenas de se alfabetizarem tanto em sua língua materna como em língua portuguesa em seu processo de escolarização. O objetivo é o de fortalecer as práticas socioculturais de cada comunidade, recuperar suas memórias históricas e reafirmar suas identidades.

“A língua indígena escrita não deixa de ser fruto de um processo colonial porque a gente sabe que a transmissão de conhecimento dos povos indígenas sempre foi oral”, aponta Cristine Takuá, da etnia Maxacali, professora da Aldeia Guarani Rio Silveira, em Boraceia (SP). “ A escrita das línguas indígenas veio com a catequização, com os jesuítas e salesianos, que foram os primeiros a levar a escola para dentro das comunidades indígenas.”

Panorama da alfabetização indígena

Josélia Gomes Neves, uma das responsáveis pela criação do curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (Unir), explica que, no estado, a maioria das comunidades faz uso das suas línguas maternas no convívio familiar e social e tem o primeiro contato com a língua portuguesa praticamente na escola. “Então, geralmente, no 1.º ano, a maior parte das atividades acontece na língua materna e, a partir do 2.º ano, entra o bilinguismo pedagógico”, diz ela, que também lidera o Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia (GPEA) da Unir.

A professora detalha como acontece o processo de formação de professores na região onde atua, na Terra Indígena Rio Negro Ocaia (RO). “O curso trabalha na perspectiva da pedagogia da alternância cultural. Os estudantes indígenas vão para a Unir e têm dois meses de aulas intensivas e, em outro período, é feito seu acompanhamento nas aldeias. Há uma aldeia polo que recebe esses alunos para estudos e desenvolvimento de atividades práticas.”

Desafios para preservar a língua materna

Formado por esse curso, o professor Ihvkuhj Gavião, do povo Ikolen e residente do município de Ji-Paraná (RO), atua desde 2014 na alfabetização de crianças. Ele acredita que preservar a língua materna indígena está diretamente vinculado a preservar o universo cultural que ela nomeia. “Para manter nossa cultura, precisamos ensinar nossa língua a nossos alunos. E quando vamos ensiná-la, tentamos envolver a realidade deles, nossas tradições e costumes, dentro da concepção de Paulo Freire de ler o mundo que nos rodeia”, conta.

Mas os desafios não são poucos, a começar pela própria escassez de profissionais. “Não há professores com a formação necessária em quantidade suficiente para atender as turmas dos Anos Finais do Ensino Fundamental, por exemplo. Então, nessa etapa, são basicamente professores não indígenas, falantes exclusivamente do português”, comenta Josélia.

Outra questão são os livros didáticos escritos sob a lógica do modelo eurocêntrico. Apesar da Lei n.º 11.645 de 2008, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas do país, os conteúdos ainda trazem estereótipos de uma concepção única do que é ser indigena ou adaptações incoerentes. “Um dos materiais que os professores recebem do MEC é uma coleção que foi pensada para a Educação no campo. Ela é totalmente em língua portuguesa e, embora tenha alguma preocupação com o campo, não é na perspectiva da floresta ou dos indígenas”, relata Josélia.

Contribuição das narrativas indígenas na alfabetização

Se trabalhar com narrativas indígenas é essencial na alfabetização das crianças indígenas, essa abordagem também se mostra muito rica para os alunos não indígenas. Levar poemas, cantigas e outros tipos de narrativas para o processo de alfabetização dos estudantes de escolas não indígenas amplia e diversifica os tipos de textos e autorias abordados em sala de aula. Além disso, permite trabalhar as relações étnico-raciais, conforme determina a lei, resgatando as contribuições dos povos indígenas nas áreas social, econômica, política e cultural.

“Trazer essas histórias para crianças e jovens não-indígenas os aproxima desses outros modos de conceber o mundo. Elas tratam de cosmogonia [área do conhecimento que estuda a origem do universo], dessa relação próxima da cultura com a natureza”, salienta Cristine.

A professora considera ainda que muitas cartilhas de alfabetização trazem um olhar distante da realidade dos alunos brasileiros, sejam eles indígenas ou não. “A gente vê materiais que até hoje abordam zebras, elefantes, girafas e diversas outras referências não só de animais, mas de objetos que não fazem sentido na nossa cultura. Por que não trazer a cotia, a lontra e as cestarias como base para alfabetizar nossas crianças?”, questiona. “Os materiais não mostram essa riqueza da nossa flora e fauna. Quando é considerado esse ‘ser e estar’ no seu território, a alfabetização flui de uma forma mais tranquila, mais natural.”

Valorização da diversidade cultural

Josélia, por sua vez, propõe criar situações no processo de alfabetização das crianças que as coloquem em contato com as mais diversas culturas indígenas, por exemplo, por meio da realização de entrevistas. “Quando alunos indígenas estão nas escolas regulares, a gente propõe aos estudantes que conversem entre si, que participem de rodas de conversa para falar sobre suas rotinas e modos de vida.”

Outra abordagem interessante, de acordo com ela, é trabalhar com a construção de listas. O professor pode pedir aos alunos para enumerar nomes de pássaros e alimentos, entre outros itens com os quais tenham familiaridade, em português e depois escutar como são falados em alguma língua indígena.
Músicas, poemas e cantigas também são ótimos aliados na alfabetização, pois ajudam a explorar a musicalidade ao mesmo tempo que fomentam o letramento. “Além disso, dá para pedir para os alunos pesquisarem e criarem pequenos textos sobre determinado povo ou contos a partir de um mito indígena compartilhado. Essa estratégia é interessante porque inclui a questão da língua, mas também usa o mito como instrumento pedagógico para ensinar algo mais”, conclui.

Por: Nova Escola