Universidade deve agir para frear o bullying

Publicado por Sinepe/PR em

Embora combatida por lei, a intimidação sistemática ainda é recorrente na sala de aula e afeta diretamente o processo de formação dos alunos – sejam eles crianças, adolescentes ou adultos

Isabela* formou-se fonoaudióloga pela Faculdade de Medicina da USP em 2022, onde ingressou com cota social por ter estudado em escola pública. Apesar de um trote mais saudável na recepção, a ex-aluna passou por situações delicadas durante o período na IES.

“Alguns alunos mudaram o comportamento quando souberam que eu era cotista e outros se posicionaram contra a política de cotas, o que gerava um clima muito complicado dentro da sala de aula”, comenta. Além do tratamento hostil recebido dos estudantes, a prática de bullying foi notada também no corpo docente. “Uma professora questionou o visual dos alunos e, apesar de ter sido com uma pessoa branca que havia platinado o cabelo, acredito que houve um preconceito racial em sua fala. Ela disse que não aceitaria ‘aquele tipo de coisa’, que não gostava de bagunça no hospital, não gostava de dread ou de tererê, pois tinha ‘um cheiro ruim’ e quem tivesse deveria tirar”, afirma.

Entre os alunos, Isabela foi alvo de uma colega que, segundo ela, se frustrou com o fato de, mesmo tendo melhores condições financeiras, obter notas inferiores nas provas. “Essa pessoa tinha contato comigo, mas mudou o comportamento, se afastou e chegou a verbalizar que esse era o motivo. Com uma renda menor, eu ia melhor do que ela nas provas e isso a incomodava. A partir daí, eu entrava e ela saía. Era uma pessoa de muito poder aquisitivo e muita influência. Eu tinha medo de frustrá-la e sofrer algum tipo de retaliação”, diz. A jovem conta que buscou se manter afastada, mas coincidiu de estagiar com a colega em algumas ocasiões. “A assistência ao paciente se tornava difícil porque a nossa comunicação não era muito efetiva. Esse era um problema perceptível por parte dos professores, que não sabiam como lidar.”

A experiência de Gabriel*, na turma de fonoaudiologia da FMUSP também foi marcada por problemas decorrentes de fatores socioeconômicos. Nascido na periferia, em Osasco, São Paulo, o egresso já havia passado por constrangimentos no ensino médio, quando conseguiu uma bolsa de estudos para ingressar em uma escola particular. “Quando passei na FMUSP, me senti mais tranquilo em ser quem eu era e ia caracterizado da forma que me sentia mais confortável: de boné e camisa de time, que é o estilo periférico. Achei que não encontraria problemas como encontrei na escola particular, mas havia pessoas que olhavam para mim e diziam ‘esse daí não vai ficar muito tempo’. Acreditavam que eu não seria aplicado nos estudos e que iria mal nas provas. Mas eu ia bem, sempre me dediquei bastante e encarei como uma oportunidade que minha família não teve.”

Uma situação semelhante à de Isabela foi sentida por Gabriel e, nesse caso, para além da sala de aula. “Uma colega se incomodava com a minha presença e ela dividia apartamento com uma amiga minha. Fui ao local convidado por essa amiga, estávamos na sala e, quando essa pessoa me viu, foi embora. Após um tempo, pediu para que minha amiga a avisasse. ‘Quando trouxer essas pessoas para cá, me avisa que eu não venho’. Nesse dia, ela preferiu comer fora de casa a ficar no mesmo ambiente que eu”, relembra.

Próximo à conclusão do curso, Gabriel escreveu um projeto de TCC que foi aberto para outros estudantes se inscreverem e auxiliarem na coleta de informações para a pesquisa. “O tema fica disponível, mas o autor, não. Essa pessoa se inscreveu no projeto e, quando descobriu que era meu, pediu para sair. Não aceitou ajudar na coleta e exigiu um projeto para ela. A solução da professora foi dividir meu TCC e dar uma parte para essa aluna.”

Na avaliação de Isabela, a Universidade de São Paulo apresenta um “padrão focado na meritocracia”. Enquanto esteve na instituição, foi notada uma diferença no tratamento de alguns docentes com os estudantes. “Se essa aluna chegava atrasada, estava tudo bem. Se eu me atrasava, era recebida com uma bronca.” Gabriel menciona que os constrangimentos levaram a sintomas de ansiedade e de estresse. Embora tenha comunicado os professores, nenhuma medida foi tomada pela FMUSP.

Antes de uma aula em que seria discutido um artigo em inglês, Isabela pediu suporte à professora para tirar algumas dúvidas, pois não era fluente. “Ela ficou ofendida, disse que não era professora de inglês, que eu deveria saber o idioma porque havia questões em inglês na prova quando prestei o vestibular. Os professores deveriam entender que, com a política de cotas, o perfil de alunos da USP tem mudado. Não adianta ter um grande movimento com esse foco se os professores que estão lá para formar esses alunos não têm essa visão”, critica.

Izabel Cristina Rios, professora e coordenadora do Centro de Humanidades e Humanização da FMUSP, confirma o recebimento de algumas denúncias de bullying na Ouvidoria e na Comissão de graduação da IES. “As manifestações se referem a situações entre alunos ou entre alunos e professores.” A maioria, segundo ela, se constitui em situações circunscritas que não se configuram em bullying propriamente dito. “Mesmo assim, essas situações são sempre investigadas”, afirma.

A professora conta que a FMUSP dispõe do Código H – serviço que atende especificamente essas demandas. “Trata-se de um serviço de mediação de conflitos, realizado pelo Centro de Humanidades e Humanização, que visa acolher essas denúncias, investigar e propor medidas corretivas. Os casos que chegam à direção da faculdade são encaminhados para o Código H e, por meio dele, investigados de forma detalhada e sigilosa.” Izabel explica que todos os envolvidos são chamados separadamente para uma escuta ativa. A partir dessas escutas, um diagnóstico do caso é realizado e medidas que podem ser de natureza administrativa ou educacional são encaminhadas.

Além do Centro de Humanidades e Humanização, criado em 2023, o Núcleo de Ética e Direitos Humanos realiza campanhas de combate ao bullying desde 2015. “Outra ação importante foi a revisão do código de conduta ética e a sua divulgação na semana de recepção dos calouros”, acrescenta a docente.

Quem tem medo da diversidade?

Frequentemente atribuído ao ensino básico, o bullying também se faz presente na educação superior. Embora combatida por lei, a intimidação sistemática ainda é recorrente na sala de aula e afeta diretamente o processo de formação dos alunos – sejam eles crianças, adolescentes ou adultos.

Professor na Faculdade de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), César Lavoura Romão indica que a percepção dos discentes acerca da convivência é diferente na universidade. “As pessoas veem o ensino superior como algo que não tem tanto controle, atenção ou mediação, como se tem no ensino médio e no fundamental. Achamos que os jovens adultos já estão prontos para essa convivência, mas não estão.” O educador pontua que, no universo das IES, a prática de bullying é mais acentuada nos trotes. “Tradicionalmente, os veteranos colocam calouros em situação de intimidação e de humilhação. E é algo que, nos últimos anos, tem recebido maior atenção.”

De acordo com Romão, o bullying se dá por diversos fatores e, na maioria das vezes, envolve uma característica da diversidade. “O que gera esse preconceito e essa segregação com base em uma característica diferente? Pode ser racismo ou etarismo, por exemplo. Percebemos que precisamos de orientação nessa convivência com a diversidade porque esse é um comportamento instintivo, que vem do nosso inconsciente. A partir da percepção de que o outro é diferente, algumas pessoas com mais maturidade e com uma mentalidade inclusiva vão conviver. Mas boa parte da população ainda deixa aflorar esse sentimento instintivo da rejeição e do ataque, que pode ser uma violência física ou psicológica”, sinaliza.

Romão também atua como consultor e recebe casos de outras IES para analisar. Em sua atividade, o professor já presenciou ataques destinados aos mais diversos grupos de pessoas. “Percebemos situações de alunos diagnosticados com o transtorno do espectro autista (TEA) que não foram aceitos nos trabalhos em grupo. Houve um episódio no ensino a distância em que, no fórum, foi gerada uma discussão a partir do comentário feito por um aluno que tinha uma deficiência, e que desencadeou uma série de mensagens vexatórias e humilhantes. À época, isso foi objeto de uma atuação da coordenação. No ensino presencial, um estudante com deficiência visual foi alvo de um colega de sala que o ridicularizava com expressões corporais enquanto os demais discentes riam do ocorrido.”

O advogado defende o estabelecimento de uma cultura de respeito nas IES, que requer um trabalho de treinamento, conscientização e de convivência com a diversidade. “Uma boa prática que grande parte das IES tem são os núcleos de inclusão ou de apoio psicopedagógico que vão mediar esse trabalho e treinar professores e alunos”, evidencia.

Supervisora do SIAE da Universidade Positivo, em Curitiba, Fernanda Peixoto fala sobre as medidas tomadas em casos de bullying (foto: arquivo pessoal)

Na Universidade Positivo (UP), em Curitiba, o setor de integração e apoio ao estudante (SIAE) atua em duas frentes de atendimento: inclusão dos alunos com deficiência, transtornos de aprendizagem e TEA, e suporte emocional para todos os estudantes que buscam ajuda. O SIAE não oferece terapia, mas realiza encaminhamento e conta com algumas parcerias, como a clínica-escola da universidade. “Temos atividades coletivas e uma programação mensal de rodas de conversa e de palestras que pensam a promoção de saúde mental com temas relacionados à vida acadêmica, aprendizagem e diversidade”, detalha Fernanda Peixoto, psicóloga e supervisora do setor.

Tanto na questão da inclusão quanto na do suporte emocional, o SIAE também realiza atendimentos individuais. “O acompanhamento dos alunos com deficiência, por exemplo, é bem longo. Geralmente chegam como calouros e vão até o final da graduação. Não temos ferramentas específicas para cada deficiência, mas procuramos conhecer a necessidade do estudante para ter uma aprendizagem efetiva e, assim, montamos estratégias ao longo do curso”, explica a profissional.

No SIAE desde 2018, Fernanda recebeu alguns casos de bullying. “Tivemos casos de racismo e de etarismo. Recentemente, recebemos uma caloura do curso de medicina na faixa dos 30 anos, vem acontecendo casos de bullying em relação a ela. Relatamos à coordenação, que ficou de conversar com o grupo e dar orientações, pois está levando um sofrimento a essa aluna.”

“Muitos calouros estão na faixa dos 18 anos e há um choque geracional, mas tentamos interferir e, se for o caso, chamar para conversar individualmente. Abordamos temas relacionados à diversidade em rodas de conversa, palestras com profissionais de fora, sempre tentando levar esses assuntos para discussão. Mas, às vezes, é necessária uma intervenção mais pontual”, pondera a psicóloga. De acordo com Fernanda, se configurado como bullying, o caso é levado para a reitoria. “E aí tem todo um processo administrativo em que é feita uma comissão para avaliar a situação. Há casos que chegam a punições.”

Comunicação não violenta

Carolina Cassiano, jornalista e especialista em desenvolvimento humano: “toda violência é uma expressão trágica de uma necessidade não atendida” (foto: arquivo pessoal)

Para Carolina Cassiano, jornalista e consultora em desenvolvimento humano por meio das habilidades de diálogo, olhar para quem pratica o bullying, buscando compreender o motivo de suas ações, é um movimento de escuta empática que pode mudar o comportamento desse indiví-duo de forma mais efetiva, pois “toda violência é uma expressão trágica de uma necessidade não atendida.” Segundo a especialista, essa compreensão pode ocorrer por meio da comunicação não violenta (CNV). “A CNV não é uma técnica de comunicação, mas um caminho de autoconhecimento e de conhecimento do outro.”

“Quando me conheço, posso fazer escolhas mais conscientes de como cuidar das minhas necessidades. E não de forma automática e inconsciente com piadinhas por querer pertencer a algo. A comunicação não violenta entra como esse grande processo de perceber quais necessidades me movem e como posso cuidar delas”, frisa.

É Crime

Por meio da Lei nº 13.185 de 2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying), foram estabelecidas as diversas formas de violência física e psicológica que poderiam configurar bullying, como ataque físico, insultos pessoais, comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, expressões preconceituosas, entre outras. A Lei também determinou que as instituições de ensino devem adotar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e ao bullying.

Recentemente a Lei n.º 14.811, de 12 de janeiro de 2024, incluiu o artigo 146-A no Código Penal, criando o crime de bullying e cyberbullying. Romão enfatiza que “essas duas leis não fazem o recorte em relação à idade da vítima, portanto, as IES devem atuar na conscientização para prevenção e combate do crime de bullying e cyberbullying, pois podem ocorrer entre seus alunos, presencialmente ou no EAD”.

Na relação aluno-professor, os constrangimentos que partem do corpo docente são popularmente conhecidos como “assédio moral”. Com a nova lei, no entanto, “podemos considerar como bullying também”, acrescenta o advogado.

Com a diversidade tida muitas vezes como pano de fundo dessas intimidações, César comenta as diferenças entre o crime de bullying e outros crimes como racismo. “As instituições mais tradicionais, sejam públicas ou privadas, são historicamente mais elitistas. Os alunos beneficiados por ações afirmativas acabam, muitas vezes, sendo vítimas de discriminação ou de racismo. No caso de uma agressão pontual e isolada, podemos trabalhar com injúria, por exemplo. Se é reiterado, sistemático, pode ser configurado bullying.”

Por: Revista Ensino Superior