Como lidar com a convivência intergeracional na sala de aula

Publicado por Sinepe/PR em

Docentes devem reconhecer a diversidade presente na sala de aula

Sou graduado em psicologia há 10 anos e especialista em avaliação psicológica. Atuo na área clínica com psicoterapia e avaliação para processos cirúrgicos e na área do trabalho, com desenvolvimento humano e organizacional (treinamento e desenvolvimento de soft skills, mentorias e consultoria).

Por reunir conhecimentos de áreas diferentes dentro e fora da psicologia, me considero um profissional “T-shaped” – o que muito me ajuda na docência por conta de um percurso nada linear e que mais se assemelha a uma colcha de retalhos: já atuei na área da saúde, com foco maior em atenção terciária, alta complexidade na assistência social, setor privado e terceiro setor.

A docência é algo recente na minha carreira. Leciono na graduação em psicologia há pouco menos de um ano e tem sido uma grande jornada. Afinal, não são apenas os alunos que aprendem ao longo desse processo; cresço e aprendo junto com eles.

Hoje, o ambiente acadêmico tem, em seus traços identitários básicos, a convivência intergeracional entre os alunos e uma lacuna educacional bem demarcada, ou seja, é um cenário intensamente heterogêneo e desafiador. Especialmente no que tange a promover a transcendência do aluno para além do conteúdo técnico e ao menos viabilizar competências comportamentais. Dito isso, como o professor pode manejar esses desafios?

Minha Frase: a vida é um eterno aprendizado, e ainda morremos sem saber de nada.

Na teoria

Oi, Thiago. Que bom que ingressou na docência e já está provocado a participar do divã com um tema que, imagino, muitos professores já tenham vivido. Você me fez lembrar deste que, sem dúvida, foi um dos maiores desafios da minha carreira docente. E eu tive este “conflito” refletido duplamente no início da minha jornada enquanto professora.

O primeiro foi no meu estágio de docência no ensino superior. Acompanhada da minha professora do mestrado, passei a ministrar aulas no curso de ciências sociais. Lembro-me de me preparar arduamente, validar as atividades e conteúdos com a minha orientadora e estar acompanhada por ela durante todas as aulas.

Nesta época, eu estava com 23 anos de idade, recém-egressa do curso de psicologia e estudante do programa de mestrado em educação. Aconteceu que, nesta turma, havia um estudante de uns 65 anos de idade que passou a ter uma postura questionadora, levando, inclusive, sua indignação à reitoria da universidade: “do porque ele estava tendo aulas com uma estagiária”. Isso me desconcertou. Logo tive o apoio de outros estudantes, além da minha orientadora, e consegui sobreviver ao estágio, mas não sem alguns arranhões.

Gostei muito quando você trouxe a expressão “convivência intergeracional”, acredito que seja muito mais adequada do que “conflito”, já que a palavra “conflito” pressupõe que estas diferenças, presentes na sala de aula e também em outros ambientes, sejam marcadas por desavenças, desafetos ou hostilidade. Se entendemos que precisamos romper com preconceitos e vieses de idade, reconhecer que alguns termos e palavras que utilizamos contribuem para reforçá-los é o primeiro passo.

Assim como outras crenças e preconceitos que dominam alguns dos nossos comportamentos, o viés da idade também povoa nossos imaginários, fazendo-nos crer que existe idade “certa” para fazer certas coisas na vida. Quer ver? Tente responder às perguntas a seguir e reflita se você acredita que exista uma melhor idade para fazer estas coisas:

  1. Qual a melhor idade para casar?
  2. Qual a melhor idade para fazer faculdade?
  3. Qual a melhor idade para ter filhos?
  4. Qual a melhor idade para ser professor?
  5. Qual a melhor idade para ser chefe?
  6. Qual a melhor idade para fazer intercâmbio?
  7. Qual a melhor idade para iniciar um esporte novo?
  8. Qual a melhor idade para aprender um instrumento musical?

Se você respondeu a alguma destas perguntas, é porque está sob influência do viés da idade. Este viés trata da tendência que temos de favorecer certas faixas etárias em detrimento de outras em determinados assuntos. Ele pode se manifestar em diferentes etapas, como preferências por pessoas mais jovens ou mais velhas, com base nos estereótipos que construímos. O viés da idade pode ter impacto negativo na sala de aula quando alimentamos crenças sobre as habilidades dos estudantes a partir da idade que possuem.

Veja, por exemplo, as afirmações a seguir e o quanto você acredita nelas:

  1. Estudantes muito jovens são imaturos e inseguros.
  2. A geração Z é pouco resiliente ou resistente a frustrações.
  3. Os nativos digitais entendem muito mais de tecnologia do que os imigrantes.
  4. Estudantes mais velhos têm pouca fluência digital ou são menos inovadores.

Logo, o desafio aqui é reconhecer a diversidade presente na sala de aula e identificar que muitos dos estereótipos que construímos se baseiam em falsos fundamentos socialmente construídos.

Me permita a provocação: em que medida, a rotulação que fazemos das gerações em baby boomers, x, y, z, alpha, millennials, somada a todas as classificações de gênero e das neurodivergências não contribuem para proliferar estereótipos mais do que reconhecer, valorizar e incluir as pessoas?

Por outro lado, na sala de aula, quando consideramos a diversidade e os diferentes princípios que afetam o aprendizado, ampliamos nossa lente para um cenário ainda mais complexo e heterogêneo. Inspirada na obra “Mente, Cérebro e Educação”, de Joana Rato, listei aqui diferentes princípios que se relacionam e influenciam a aprendizagem na sala de aula:

Motivação para a aprendizagem: os fatores e influenciadores da motivação para aprender um determinado conteúdo são individuais, ou seja, nem sempre o que motiva um estudante, motiva o outro de igual forma.

Emoção: a emoção influencia a cognição, porém nem todos os estímulos ou gatilhos que alteram o estado afetivo são iguais para as pessoas. Algo pode ser envolvente emocionalmente para um estudante e pode não ser para outro.

Estresse, depressão e ansiedade: ambos afetam a aprendizagem, no entanto, o que pode ser estressante ou causar depressão e ansiedade para um estudante, pode não ter o mesmo efeito em outro.

Aprendizagem baseada em desafios: a forma como os desafios são percebidos pelos estudantes e a forma para resolvê-los é altamente individualizada. Enquanto para um estudante, uma atividade ou desafio pode ser extremamente simples e pouco empolgante, para outro pode ser praticamente impossível de resolver.

Interações sociais: aprendemos uns com os outros. O nível e quantidade de interações que temos ao longo da nossa jornada de aprendizagem varia de pessoa para pessoa, tornando-nos singulares.

Atenção e processos cognitivos: aprender pressupõe a capacidade de organização da atenção suportados por funções como metacognição, autorreflexão, atenção seletiva e focada. Todos estes sistemas funcionam em níveis diferentes em diferentes pessoas.

Processos conscientes e inconscientes: aprender envolve processos conscientes e inconscientes que diferem entre os estudantes com base em suas experiências individuais que podem ser difíceis de serem reconhecidas e mapeadas.

Desenvolvimento humano: a idade, etapa da vida, etapa do desenvolvimento cognitivo e experiências anteriores contribuem para que a aprendizagem seja diferente para cada estudante.

Cognição incorporada: aprender não é somente uma relação com o cérebro, mas com todo o corpo. Somos influenciados por outras pessoas no nosso processo de aprender. O professor é um grande influenciador da aprendizagem e suas ações podem espelhar ou serem incorporadas no aprender de forma individualizada.

Sono e sonho: a quantidade de horas de sono, a presença do sonho no estado do sono REM contribuem para a consolidação da memória. Porém, as práticas de descanso variam de pessoa para pessoa, hábitos familiares, culturais etc.

Nutrição: necessidades nutricionais básicas são comuns entre os seres humanos, no entanto, a frequência e diversidade na ingestão de alimentos varia de pessoa para pessoa. Além de que estudantes com fome ou desnutridos não conseguem aprender adequadamente.

Atividades físicas: influenciam a aprendizagem, porém diferentes indivíduos precisam de diferentes quantidades e intensidades de atividades físicas para alcançar o desempenho ideal.

Uso e desuso: conhecimentos permanecem utilizáveis em atividades que mantêm cérebros cognitivamente ativos. Logo, variações ambientais, incluindo experiências e predisposição genética influenciam o resultado do processo de aprendizagem.

Feedback: o tipo, a frequência e resultado do feedback podem impactar o resultado da aprendizagem. A forma como cada estudante recebe um feedback, como ele é percebido e interpretado, o contexto em que é proferido influencia a aprendizagem.

Significado e sentido: é mais fácil aprender, recuperar memórias e conectar conceitos em contextos que são mais relevantes e significativos. No entanto, o que é relevante e significativo varia de estudante para estudante.

Novidades e padrões: o cérebro detecta novidades e procura padrões, no entanto, o que é novo para um estudante pode não ser para outro.

Somado a este caldo da singularidade do aprender está a complexidade das relações que passam a se ampliar com o aumento da longevidade. A convivência de pessoas de diferentes gerações em espaços de trabalho e aprendizagem tem se ampliado.

Adicione a isso, ainda, as mudanças e transformações históricas, sociais e culturais que impactaram as diferentes gerações. A destemporalização, destotalização e desreferencialização, por exemplo, teorias articuladas pelo alemão Gumbrecht, contribuem para construção de cenários e pontos de vistas distintos entre as gerações. Significa que a forma como nos relacionamos com o tempo, com a verdade, os saberes, bem como as referências que constituem cada uma das gerações são muito distintas.

Na sala de aula

Logo que iniciei como professora no curso de pedagogia, encontrei estudantes com diferentes perfis. Alguns jovens recém-egressos do ensino médio e outros com muitos anos de experiência na escola, porém sem a formação superior. Seus desejos e expectativas sobre o futuro também eram distintos. Suas preocupações, desafios diários e dificuldades, completamente diferentes.

Percebi que mediar as participações, bem como a integração entre estes estudantes era fundamental não só para facilitar o processo de aprendizagem, mas também garantir um clima favorável na sala de aula.

Muitas vezes, os professores podem se sentir pressionados não somente com a gestão da diversidade de perfis de estudantes na sala de aula, mas também com a responsabilidade de atender individualmente às necessidades de cada um. Uma missão que pode parecer impossível.

Reservar um tempo para rastrear as necessidades dos alunos e planejar as experiências de aprendizagem é o que torna o ensino diferenciado, mas não só isso. Neste sentido, o professor pode:

  • Encontrar estratégias que foquem no estudante e não nas gerações ou nos estereótipos: reconhecer que cada indivíduo é único, com suas habilidades e experiências e que tem um jeito ou uma forma própria de “funcionar” no mundo.
  • Criar espaços de acolhimento e diálogo: a sala de aula precisa ser um ambiente que favoreça a conexão e a segurança psicológica. Que as pessoas possam florescer e se sentirem pertencentes.
  • Ativar a autorresponsabilidade e autoconhecimento: dificilmente o professor conseguirá atender, de forma tão singular, as necessidades individuais de todos os seus estudantes em uma sala. Um caminho é apoiá-los na sua descoberta para que conheçam a forma como aprendem, como se emocionam, como focam sua atenção, como se motivam.

O caminho da autodescoberta também precisa ser conhecido por nós, professores. Refletir sobre o que nos motiva, o que nos deixa bem, o que nos distrai, o que nos alimenta e energiza, como descansamos e como aprendemos é fundamental para apoiar os estudantes neste processo. Aqui, a certeza é reconhecer que, na complexidade da vida, cada ser pode desenhar seu espaço para um mundo melhor.

Apesar de não explorarmos tanto os temas intergeracionais e etarismo aqui na nossa conversa, gostaria de finalizar deixando uma recomendação de leitura da profa. Becca Levy, uma renomada especialista em psicologia do envelhecimento. Em suas pesquisas e livros, ela tem nos alertado sobre os vieses e estereótipos de idade assimilados pela cultura, que são reforçados sem percebermos. Estas crenças, alerta ela, afetam profundamente a forma como nos relacionamos com as outras pessoas, com o nosso próprio envelhecimento impactando positiva ou negativamente na nossa saúde. No site oficial dela, você encontra informações sobre o livro e também artigos sobre o tema selecionados para aprofundar seus estudos.

Por: Revista Ensino Superior