Saúde mental: problema se agrava e IES atuam na prevenção

Publicado por Sinepe/PR em

A saúde mental dos universitários ganhou relevância por conta dos reveses da pandemia; entretanto, as pesquisas apontam que essa preocupação não deve diminuir

O informe mundial de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2022, o mais robusto realizado pela entidade nas duas últimas décadas, apontou que em 2019, em todo o mundo, quase um bilhão de pessoas tiveram algum transtorno mental. Entre elas, 14% eram adolescentes. O mesmo relatório informa que em 2020, o primeiro ano da pandemia de covid-19, os sintomas de depressão e ansiedade aumentaram 25%.

Na universidade, o tema da saúde mental ganhou relevância por conta dos reveses dos estudantes na pandemia. Entretanto, as pesquisas apontam que essa preocupação não deve diminuir. Estudos realizados na Europa e Estados Unidos reforçam o resultado da pesquisa World Mental Health Survey, da OMS, divulgado em 2023, em que 35% dos estudantes universitários entrevistados enfrentam problemas de saúde mental, com mais recorrência de sintomas de ansiedade e depressão.

No Brasil, especialistas entrevistados para esta reportagem atestam o aumento de casos de ansiedade e depressão nas IES em que atuam, mas os localizam como um fenômeno que afeta pessoas em todo o mundo e de todas as faixas etárias. Ou mesmo como sintomas esperados em jovens que estão diante de uma nova fase da vida, além de resquícios da crise sanitária. Eles afirmam também que o conhecimento científico ampliou a consciência sobre essas questões, oferecendo diagnósticos, dando nomes aos adoecimentos, o que aumenta a percepção dos casos.

O período de adaptação

Gisele Vieira de Mello, há trinta anos professora na Unimar, supervisiona e coordena o trabalho de 25 estagiários do último ano de psicologia no atendimento aos estudantes (foto: divulgação/Unimar)

Antes de pensar no aumento de percentuais de adoecimentos, a psicóloga Gisele Vieira de Mello prefere apontar o entorno deste fenômeno. “Aumentou a liberdade para falar das questões mentais, aumentaram o conhecimento, a consciência e a percepção dessas ocorrências em nós e no outro.” Gisele é professora de psicologia há trinta anos na Universidade de Marília (Unimar), no Interior paulista, e coordena o Núcleo de Apoio Psicopedagógico, o Nuap, criado em 2015 e que hoje conta com 25 estagiários do último ano de psicologia no atendimento aos estudantes. A Unimar tem seis mil alunos de graduação e pós na modalidade presencial e 15,4 mil no EAD.

“A vida está ficando mais complexa em alguns aspectos e mais simples em outros. A tecnologia e o progresso facilitam, mas trazem outras dificuldades e tipos de adoecimento. Temos uma vida mais agitada, mais conectada ao outro, ao mundo, e menos conectada a nós mesmos”, detalha Gisele.

“O estudante que chega à universidade está num momento de desassossego, estranheza, é óbvio que a ansiedade vai gritar. É esperado que encontremos um desarranjo e um certo sofrimento. Em paralelo, também esperamos bons sentimentos, euforia, com o olhar para as oportunidades. O aluno lutou para estar lá.”

Os perfis dos alunos que buscam o Nuap são variados. Prounistas de cursos mais elitizados, como medicina, utilizam bastante o Nuap. Muitas vezes, chegam à universidade após um mês das aulas iniciadas, por causa de questões burocráticas, e precisam de orientações de estudo. A Unimar recebe estudantes de outros estados. “Estudantes do Norte e Nordeste chegam no começo do semestre e só retornarão para a casa em julho, e às vezes essa pessoa tem só 18 anos. É duro, é muito longe, fica a ideia de que ‘se me der um problema, tenho que aguentar’. Uma depressão pode acontecer não só por essa distância, mas porque o estudante ainda não formou novos vínculos significativos”, explica. Há também o aluno que não vê significado na nova fase, por questões de adaptação ou porque a escolha do curso não foi adequada.

No Nuap, conta a professora, “o primeiro passo é ajudar o estudante a se adaptar a essa nova vida para depois ver o que sobrou de angústia. Às vezes não sobrou ou é algo administrável. Quem não tem angústia? Quem não tem frio na barriga? Essa angústia pode ser a mola propulsora para o desenvolvimento dele, como pode ser uma angústia ainda muito grande e ele vai precisar de um tratamento, em alguns casos de uma medicação. Fazemos esse socorro, encaminhamos para a psiquiatria se necessário, mas, em paralelo, vamos ajudá-lo a se adaptar à nova vida”. Os estudantes chegam ao Nuap por conta própria ou por indicação dos professores. O serviço é divulgado constantemente no site da universidade e na acolhida aos calouros.

Além de questões psicopedagógicas, principalmente em relação à nova rotina de estudos, os estudantes também podem receber orientação acerca da alimentação, do sono, da necessidade de exercícios físicos, da gestão do tempo e financeira. A Unimar tem serviços gratuitos como academia de ginástica, sessões de hidroginástica ou aulas de dança do curso de educação física, além de nutricionistas e cozinha comunitária. “Temos a lista de todos os serviços que a universidade oferece e fazemos a ponte para os alunos”, detalha Gisele. Quando há necessidade de tratamento psicológico, os estudantes são encaminhados para as clínicas da universidade. Porém, para não as sobrecarregar Gisele afirma que é fundamental uma triagem, checando os recursos do estudante, como a existência de plano de saúde, por exemplo.

Cada vez mais demanda

Assim como na Unimar, na Universidade do Vale do Paraíba (Univap) o atendimento psicopedagógico é o momento para acolhimentos. Thamires Melo, a psicopedagoga responsável, conta que os casos de TDAH, TEA e autismo são cada vez mais comuns. Os estudantes já chegam conscientes de suas características, apresentam laudos e buscam o setor para ajustar estratégias de estudo e avaliação.

Os acometidos por ansiedade também batem à sua porta. “Muitos até fazem terapia, mas nos procuram no momento das provas, ou de escrever o trabalho de conclusão de curso. Às vezes, uma orientação já alivia a angústia”, conta.

Casos mais graves de ansiedade e depressão são encaminhados para os serviços da escola de psicologia, que mantém um atendimento de emergência, para ex-alunos que praticam preços sociais ou para a rede pública de saúde.

Thamires conta que há intenção de expandir o setor. “Na minha visão pessoal, o que vem acontecendo é que os alunos percebem maior abertura para falar sobre ansiedade e emoções. Os docentes também já perceberam que é uma questão que deve ser falada, acolhida e encaminhada porque interfere no rendimento acadêmico. Essa abertura cria mais demandas.”

Uma linguagem à disposição da dor

“Olá, boa tarde, tenho depressão e TDAH”, diz o estudante ao recorrer a um serviço de apoio da universidade. Frases como essa são comuns, e com ela vem também um conjunto de diagnósticos já trabalhados anteriormente, de acordo com o professor Celso Alves Cruz. Ele é o responsável, em São Paulo, pelo Papo, o programa de acolhimento, aconselhamento e encaminhamento da ESPM, que existe há 25 anos.

“Nos últimos 20 anos, há mais acesso às informações, as pessoas estão mais conscientes de suas próprias dores, nomeando-as, organizando a linguagem em torno delas”, explica o professor. “Esses diagnósticos eram estigmatizados, mas acabaram por ajudar a construir caminhos na escola básica, além disso, a cultura em relação ao sofrimento mudou muito.”

Na ESPM, o Papo está presente nas unidades em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, sob coordenação de professores com vínculo longo com a instituição, portanto, que conhecem a sua cultura e que têm alguma formação terapêutica. Cruz é professor há 22 anos na ESPM, é psicoterapeuta com formação em bioenergética e assumiu a coordenação do Papo há dez anos.

O serviço se organiza em torno de encontros individuais, avulsos e sigilosos, com foco para as questões emocionais e afetivas. Há estudantes que o utilizam várias vezes, principalmente em períodos agudos. A partir do encontro, há o encaminhamento, se necessário. “Também é inequívoco que a pandemia agudizou questões e trouxe outras que não existiam. Ansiedade, depressão, a lógica do burnout, o pânico são elementos muito fortes, em geral associados a questões de aprendizagem”, relata.

Para as questões de aprendizagem, há na ESPM o Pipa – Programa de intervenção psicopedagógica. “Quando o estudante vai fazer o vestibular já pode apresentar laudos e a partir daí terá tutoria em todo o seu processo acadêmico. A tutoria faz a ponte entre estudantes e professores para a construção de modos de aprendizagem que sejam mais adequados à lógica daquela pessoa.” Cruz menciona que a cultura do bem-estar está bastante em voga. É possível pensar a saúde mental a partir dela, não apenas do sofrimento. Nesse contexto, a quantidade de ações pode se expandir com palestras, encontros, meditação e yoga. “São ações que realizamos de maneira ainda assistemática.”

“Do ponto de vista técnico, de terapias, trabalhamos com a questão de foco, contida nos livros de Hector Juan Fiorini. Do ponto de vista geral, trabalhamos com uma abordagem winnicottiana. Winnicott fala de acolhimento, contorno e limite, mas são parâmetros, pois não diagnosticamos nem realizamos terapia propriamente, é apenas uma ajuda para identificar o foco.”

Bem-estar e prevenção

Carolina Antonelli dos Santos, psicóloga, coordenadora e docente do curso de psicologia da Escola das Ciências da Saúde do Centro Universitário Facens, menciona como causa para o adoecimento mental a forte pressão familiar e social, que reputa à conquista do diploma a possibilidade de uma vida adulta plena, confortável, de sucesso e conquista de bens materiais.

“As universidades também colocam algum tipo de pressão no bom desempenho. Os estudantes chegam com elevado nível de exigência, eles se cobram, estão muito mais preocupados com a carreira deles. Por um lado, é uma perspectiva positiva, por outro, pode levar ao adoecimento se não cuidar.”

A Facens é a IES latino-americana na Higher Education Network, do The Wellbeing Project, uma iniciativa mundial focada no bem-estar e na colaboração global para mudanças sociais, por meio de análises dos fatores sociais, culturais, econômicos, internacionais e locais para identificar o impacto deles no bem-estar e na qualidade de vida. “Várias universidades participam do projeto. A pressão, a necessidade de ‘se tornar alguém’, é um fenômeno presente em todos os lugares”, conta Carolina.

Outro fenômeno mundial é a aceleração. “Nós sediamos o congresso da Wellbeing no semestre passado e a questão do manejo do tempo, por exemplo, foi muito discutida. Falamos sobre a necessidade de desaceleração e propomos a quebra de crenças, como a de que quanto mais produtivo eu for, quanto menos tempo desocupado eu tiver, quanto mais eu trabalhar, serei mais realizado e terei sucesso profissional. Será que é isso mesmo?”

Há fatores locais. No Brasil, diz Carolina, existe uma ruptura muito grande entre o ensino médio e o superior. Os estudantes chegam à universidade com falta de repertório de habilidades sociais e com um esquema de estudos que dificulta a adaptação, inclusive com quebra significativa de metodologia.

Tradicionalmente conhecida por seus cursos de engenharia e tecnologia, a Facens tem quatro mil alunos. A Escola de Ciências da Saúde é recente, de 2022, assim como o curso de psicologia. Porém, a preocupação com a saúde mental dos estudantes levou a IES a criar, há seis anos, o Enlace – Laboratório de Colaboração Socioemocional, que cuida da saúde mental, bem-estar e qualidade de vida dos estudantes e trabalha o desenvolvimento de competências socioemocionais.

Com esse objetivo, foram criados locais como o espaço praia, o redário, e o Buda, utilizado para meditar e relaxar, além de salas aconchegantes com poltronas. Para momentos de mais ansiedade, o chamado Espaço Alívio, com sacos de boxe. “Com a chegada da psicologia na Facens, fizemos uma parceria com o Enlace, então, agora, em todo projeto de qualidade de vida e saúde mental, trabalharemos juntos”, detalha Carolina.

O Enlace realiza pesquisa de bem-estar com os estudantes. Os dados coletados norteiam as ações da Facens para o ano seguinte, no sentido de aprimorá-las. Por exemplo, o relatório de 2023 aponta que dos estudantes que responderam a pesquisa – foram 1.087 no primeiro semestre e 1.459 no segundo semestre – 1.267 responderam “mais ou menos” e 1.019 “bastante” para a pergunta “O quanto você consegue se concentrar?”. Questões como a qualidade do sono e satisfação com o autodesempenho também são respondidas. O relatório traz pistas acerca da saúde mental dos estudantes e, para 2024, Carolina afirma que será realizada pesquisa específica para avaliação da saúde mental.

A Facens tem, ainda, o centro de psicopedagogia, em que uma profissional recebe os alunos para atendimento individual. “Fazemos acolhimento e acompanhamento numa perspectiva psicopedagógica e pretendemos ampliar essas possibilidades”, detalha Carolina. Além do foco na promoção do bem-estar e prevenção, a clínica-escola de psicologia será inaugurada e oferecerá atendimentos de psicoterapia individuais e em grupo.

Visão corporativa

Desde 2022, o grupo Afya conduz estudos nacionais que revelam dados sobre a saúde mental de médicos e estudantes de medicina no Brasil, por meio de parceria entre seu Research Center e o Núcleo de Experiência Discente (Ned), área responsável pela interação com os alunos e que coordena ações de várias frentes, incluindo a de saúde mental.

Marina Silveira de Resende, coordenadora do Ned Nacional da Afya, afirma que “os resultados destacaram uma grande proporção de profissionais e alunos sofrendo com sintomas de transtorno de ansiedade e depressão, além de enfrentarem desafios como jornadas extenuantes de trabalho e estudo e dificuldades para manter um sono reparador, lazer e atividades físicas regulares”. Também estão relatados o uso de medicamentos e aumento do consumo de álcool.

Diante dos resultados, a Afya implementou iniciativas. Todas as suas unidades contam com o Ned, espaço que, entre outras atividades, desenvolve ações de prevenção em saúde mental e de acolhimento dos alunos. Cada Ned tem autonomia para definir as ações específicas e realizar oficinas para abordar as demandas locais identificadas nas pesquisas. “Além disso, implementamos um material de treinamento para colaboradores e docentes, visando capacitar a identificação de alunos em situação de vulnerabilidade psíquica.”

Rede de saúde mental do Semesp

Em setembro do ano passado, o Semesp criou a Rede de Saúde Mental, a partir da percepção de demandas eventuais, expressas pelos gestores. A adesão das IES foi surpreendente, de acordo com Fábio Reis, diretor de inovação e redes do Semesp. “Realmente era uma necessidade. Esse não é um tema tão aberto, talvez porque não estejamos acostumados a falar sobre saúde mental. Há um aprendizado acerca de como lidar com o tema.”

Com mais de uma dezena de reuniões já realizadas, o primeiro passo foi mapear as iniciativas existentes nas IES, algumas já bem consolidadas. “Foi rico, pois gerou inspiração, sinergia e reuniões paralelas. A cooperação é o espírito da rede.”

O passo seguinte foi discutir o foco ou a partir de qual perspectiva acontecerão os debates em torno das questões de saúde mental. Há grande diversidade de iniciativas, assim como de profissionais participantes – psicólogos, psicopedagogos e psiquiatras. O aspecto da prevenção obteve mais relevância.

Neste semestre, é possível que as IES participantes da rede colaborem com a pesquisa que o Semesp pretende realizar. O objetivo será radiografar o contexto da saúde mental dos universitários brasileiros. Para tanto há um acordo com universidades espanholas, que aplicaram uma pesquisa sobre saúde mental e constataram que 35% dos estudantes têm algum tipo de transtorno mental.

Por: Revista Ensino Superior