IES de pequeno porte reagem à concorrência

Publicado por Sinepe/PR em

Entre as 2.283 IES privadas do Brasil, 82,5% são de pequeno porte. Números e fatos atestam que algumas passam por dificuldades. Entretanto, elas resistem

Entre as 2.283 IES privadas do Brasil, 82,5% são de pequeno porte. No setor público, elas representam 36,4% das 312 instituições. Já as mantenedoras de grande porte, com mais de 20 mil alunos, representam 3,1% do total de IES da rede privada e 15,4% da rede pública. Juntas, estas de grande porte detêm 62,5% das matrículas do país, de acordo com o Mapa do Ensino Superior do Semesp. A tendência de concentração acentuou-se durante a pandemia, com 2,9% de aumento de matrículas nas IES de grande porte, de 2020 para 2021.

Números e fatos atestam as dificuldades para a IES de pequeno porte. Entretanto, elas resistem. “Resistimos porque acreditamos na educação de qualidade”, diz Tânia Cristina Bassani Cecilio, diretora-geral das Faculdades Network, em Nova Odessa, região metropolitana de Campinas, no interior paulista. Para ela, “a atuação mercantilista dos grandes players do mercado na modalidade EAD – que configura uma indústria da educação – atrapalha, mas o problema maior não é este”. Há outros que afetam o ensino superior como um todo e mais diretamente as IES de pequeno porte. “As maiores alavancas da crise são os cortes dos projetos sociais e a falta de uma política de apoio aos egressos do ensino médio.”

O Censo Escolar do Inep deste ano apontou que o ensino médio é a etapa com maior taxa de repetência (3,9%) e evasão (5,9%). “Além disso, ainda prevalece uma formação deficitária por causa da pandemia e o Enem tornou-se mais exigente, elitista e excludente.” Tânia lembra que o corte do Enem para acessar o Prouni é alto – 450 pontos e não zerar na redação – e 50% dos estudantes não alcançam. “Sobram vagas.”

A diretora menciona a importância dos projetos sociais. Por exemplo, o corte abrupto no Programa Escola da Família, em 2019, impactou estudantes e as IES particulares. O programa, criado pela Secretaria da Educação do estado em 2003, concedia bolsas de estudos. Tânia conta que grupos de universitários eram recrutados, treinados e encaminhados para as escolas estaduais aos finais de semana. Eles trabalhavam no acolhimento e com as questões de violência, ofereciam aulas de reforço e atividades esportivas. “Os mais carentes atuavam no projeto e estudavam gratuitamente nas IES. Trabalhamos quase vinte anos com esses projetos”, conta.

Tânia aponta o custo do transporte como um complicador. “É quase mais caro a van do que a faculdade. Além disso, o serviço está deficitário. Cortaram linhas durante a pandemia e elas não voltaram. O jovem quer estudar e não tem como chegar.”

Somada a essas dificuldades está a “concorrência predatória com a modalidade EAD, que ‘vende’ a mesma qualidade, oferece o ‘mesmo’ diploma, mas em condições precárias, a ponto de mobilizar os órgãos de classe contra a precarização da educação superior”. Outro ponto, afirma, é o sistema de avaliação que não é coerente com a própria lei do Sinaes, tornando-se altamente punitivo.

Demandas urgentes

Tânia acredita que o cenário pode melhorar se o sistema de avaliação promover a união, o respeito e a cooperação entre as instituições e não a competição, além da valorização da identidade de cada instituição. A gestora sugere também políticas de apoio das faculdades para o ensino médio. “Nossos universitários têm muito a oferecer às escolas públicas”, ressalta. E mais – a regularização de débitos por meio do Proies, o Programa de estímulo à reestruturação e ao fortalecimento das instituições de ensino superior, que converte parte das dívidas tributárias com o governo federal em bolsas de estudo.

No âmbito da Faculdades Network, ações estratégicas enfrentam a crise. Uma delas foi a alteração no processo seletivo. “Retiramos a avaliação. Matriculamos os interessados e oferecemos um curso de nivelamento. Trabalhamos acolhimento, encorajamento, apresentamos as profissões e os cursos, apresentamos assuntos da atualidade e conteúdos tradicionais, como matemática e língua portuguesa, apontando as aplicações sociais. Oferecemos conteúdos de apoio para o ingresso no mercado de trabalho, como noções de ferramentas digitais e elaboração de currículos. Com isso, tivemos um aumento de 30% das matrículas.”

Nas atividades de extensão, houve a abertura para várias áreas; um exemplo é o atendimento aos alunos com dificuldade de aprendizagem por meio do curso de pedagogia. A infraestrutura da faculdade foi aberta à comunidade. “Aulas de natação e hidroginástica, ou de esportes, para atrair jovens e aproximar as famílias”, explica a diretora. E, por fim, a entrada no EAD, “com um modelo que chamamos de Pós-graduação lato sensu flex. As disciplinas são digitais, mas haverá um encontro presencial semanal”.

Qualidade é estratégia indispensável

Investir na qualidade e na infraestrutura, profissionalismo na gestão com processos eficientes e enxutos, marketing arrojado e cuidados com a permanência são as principais estratégias para fazer frente à crise. Quem as elenca é Wilson Santos, vice-reitor do Centro Universitário Vale do Salgado, há vinte anos em Icó, município de 66 mil habitantes no Vale do Salgado, interior do Ceará.

São 1.700 alunos na graduação, em oito cursos, todos presenciais. “Não utilizamos os 40% de aulas remotas permitidos pelo MEC. O que temos são algumas disciplinas do núcleo básico – sociologia, antropologia, metodologia, libras – no contexto que chamamos de ambiente presencial digital”, explica.

A qualidade pedagógica é crucial. Santos afirma que a UniVS fica entre as 7% melhores IES do país, numa posição que, de acordo com os resultados do Enade, varia entre a 153.ª e a 158.ª. “Nós trabalhamos para estar entre as 100 melhores. Ser uma instituição de qualidade é talvez a principal estratégia, com indicadores altos, cursos reconhecidos com nota 5 e Conceito Institucional (CI) 5.” Esses indicadores, explica Wilson Santos, inferem, inclusive, no oferecimento de mais bolsas por meio do Fies e Prouni, fundamentais para a região, em que de 60% a 70% dos alunos demandam bolsas.

“Trabalhar a empregabilidade do aluno também é ação estratégica. Temos um sistema de empregabilidade que desenha as principais competências que o mercado quer. Para isso, realizamos entrevistas com empregadores e a partir dessas informações trabalhamos os currículos e as competências em sala de aula.”

Wilson Santos ainda aponta o caminho do investimento na infraestrutura. A UniVS tem clínicas de fisioterapia, enfermagem, psicologia, medicina veterinária e o Núcleo de práticas jurídicas (NPJ). O atendimento à população colabora com a qualidade da formação e com a captação. São mais de 30 mil atendimentos ao ano, que cobrem cerca de 33 municípios do entorno.

A curricularização da extensão faz a UniVS fincar ainda mais seus pés na comunidade local. “Temos uma temática, por exemplo, saúde pública. Os estudantes de todos os cursos vão para a comunidade para entender os problemas, as dores, e entregam um projeto que de fato tenha impacto e resolva o problema”, conta.

A UniVS se ressentiu diante do crescimento dos cursos EAD, especialmente no pós-pandemia. Além das preocupações com a própria instituição, há o olhar para o ensino superior como um todo. “Em relação ao EAD , a maioria dos grandes grupos não entrega qualidade na formação dos egressos. Os desafios da educação superior atual implicam saber como vamos resolver o problema do apagão de competências e como vamos proceder com as profissões. Não é possível formar um profissional de qualidade com ausência de práticas, de proposta pedagógica inovadora e consequente e sem uma formação efetiva para o novo mundo do trabalho”, finaliza.

Resistência das comunitárias

Em setembro, a Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem) completará 102 anos, é praticamente um patrimônio de Três de Maio, município na região noroeste do Rio Grande do Sul com cerca de 24 mil habitantes. “A instituição nasce antes mesmo do município, por conta da imigração alemã. A comunidade luterana se reuniu para oferecer educação para os seus filhos”, conta o diretor-geral da instituição, Sandro Ergang, ele mesmo egresso da instituição, onde cursou da escola básica à graduação. “Até o mestrado realizei por meio de parceria da Setrem com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).” Ele trabalha na instituição há 23 anos, sete deles na direção.

A Setrem tem hoje 1.700 alunos, mas já chegou a ter 2.300, em todos os níveis de ensino. Especificamente no ensino superior, são 800 alunos, entre graduação e pós. O cenário é negativo, pode não significar o fechamento da instituição, mas uma redução considerável da oferta de cursos. O curso de engenharia de produção da Setrem teve sua última turma formada em 2023, e o de sistema de informação também foi descontinuado. Em contrapartida, a Setrem oferece agora o curso de engenharia da computação. “Temos oito cursos, já tivemos 12 e a tendência é fechar mais alguns.”

Embora comunitária e filantrópica, a Setrem se coloca em situação de competitividade como qualquer outra. E a concorrência é pesada. “Os grandes players do mercado trabalham com escala e números assustadores.” Assim como em Nova Odessa, o custo do transporte público é uma barreira. “Recebemos alunos que moram a mais de 100 quilômetros de distância; para chegar precisam de transporte e o custo fica muito alto, quase o valor da mensalidade. O estudante acaba optando pelo EAD”, relata o diretor.

Estratégias para a sustentabilidade

A partir de 2017, quando a redução de alunos foi mais proeminente, a Setrem experimentou estratégias como a contratação de profissionais de marketing para incrementar as mídias sociais. “Não deu certo, porque a nossa forma de captação é diferente da de grandes centros e conseguimos chegar mais diretamente no alunado”, explica.

A estratégia mais efetiva foi a redução de valores da mensalidade, com mais descontos e bolsas. “Houve melhora no quantitativo da captação de estudantes, mas, por outro lado, tivemos de abrir mão da receita.”

Para se tornar mais competitiva, a Setrem desenvolveu seus cursos EAD. A ideia é oferecê-los, mas manter momentos presenciais. “Fizemos o credenciamento do EAD em 2020, passamos por avaliação, tivemos conceito 5, só estamos aguardando a chancela do ministro para oferecer, mas não acreditamos na modalidade a distância sem vivência.” O EAD, então, talvez não resolva o problema dos alunos que estão mais distantes, mas o público local terá essa opção.

Com os cursos EAD, o primeiro revés da Setrem foi o sobrestamento das licenciaturas na modalidade EAD pelo Ministério da Educação (MEC). “Para pensar um novo marco regulatório, o primeiro movimento foi sobrestar as licenciaturas. Ou seja, levamos três anos para credenciamento e autorização do curso de licenciatura em pedagogia, e agora foi sobrestado, não poderemos oferecer. E as IES que estão oferecendo continuarão operando.”

Outra estratégia para minimizar os impactos da crise é a prestação de serviços dos laboratórios, como o de solo e de sementes. “Trabalhamos com o melhoramento genético de cultivares como canola e linhaça”, exemplifica, “e desenvolvemos agentes biológicos naturais para evitar o alto índice de agrotóxicos na lavoura; é um produto biológico, biodegradável e não poluente.” Cursos de curta duração para empresas, produtores, e formação de professores para agentes públicos e privados também estão na cesta de serviços. Além disso, em parte, “a educação básica sustenta a estrutura do ensino superior. Até 2015, o ensino superior basicamente sustentava a educação básica”.

O futuro é incerto. “A comunidade perde muito quando uma IES comunitária deixa de exercer o seu papel. Fazemos atividades em parceria com associações comerciais, sindicatos dos trabalhadores lojistas, com formação e qualificação de mão de obra local. Junto à prefeitura municipal, atendemos 42 municípios na formação de professores. Há outras instituições comunitárias parceiras que fazem o mesmo trabalho. Saem as comunitárias desse cenário, como será a formação?”

Por: Revista Ensino Superior