Alfabetização: por onde começar?

Publicado por Sinepe/PR em

Planejamento deve partir do nível de conhecimento dos estudantes e nas necessidades de aprendizagem para que avancem

Os primeiros dias de aula são momentos de muitas descobertas, tanto para as crianças quanto para seus professores. É um período de criação de vínculos e acolhimento, ao mesmo tempo que também é um momento importante para o professor analisar os saberes da turma.

Cada criança é única e traz consigo conhecimentos de sua vida cotidiana e é importante investigar o que cada um sabe. Por isso, é essencial fazer a sondagem para descobrir o ponto de partida para suas intervenções didáticas na alfabetização.

Essa é uma tarefa que, apesar de desafiadora para o docente, visto que as salas geralmente possuem um número grande estudantes, é muito importante para o planejamento de atividades adequadas e que também pode agilizar a aprendizagem da turma. Sim, foi isso mesmo que você leu: “agilizar”, ou seja, ganhar velocidade, rapidez no processo de alfabetização, pois no que diz respeito a escrita, identificar as hipóteses de cada criança vai garantir que o docente prepare intervenções ajustadas para que elas saiam do que sabem para o que ainda não sabem. É aí que está o “pulo do gato” para fazer com que a turma reflita questões sobre o sistema de escrita que a faça avançar e não apenas “cumpra lições”.

Sugestões para as primeiras semanas de aula

Vou dar três exemplos de perfis de estudantes diferentes e as propostas iniciais que realizei com cada um para que avançassem em seus saberes a partir do ponto que se encontravam.

Essas três crianças do 1.º ano do Fundamental estavam em hipóteses de escrita diferentes, então, se eu não tivesse identificado o que cada um sabia e planejasse atividades idênticas, os avanços seriam lentos ou inexistentes nos primeiros meses. Entenda:

Planejamento para a hipótese de escrita pré-silábica

No diagnóstico, identifiquei que Geovanna priorizava o uso das letras de seu nome na hora de escrever e fazia uma leitura global da palavra que escrevia. Entendia que para palavras diferentes era necessário “escrever diferente”, por isso utilizava as letras de seu nome mudando apenas a ordem – o que já demonstra um avanço no nível pré-silábica, pois não faz garatujas, por exemplo, porém ainda não é uma escrita que representa os sons da fala.

Ela precisava de bastante trabalho com o alfabeto com propósito de escrever e ler (não apenas decorar o nome de letras). Também tinha de descobrir que a escrita representa a fala.

Fiz com elas diversas leituras de ajuste e de listas e produção escrita com intervenções da professora utilizando palavras estáveis da sala – ou seja, que escreva se apoiando em outras palavras conhecidas.

Agrupamento de alunos com conhecimentos diferentes (porém próximos)
Enquanto Sofia estava em uma hipótese silábica com valor sonoro convencional priorizando as vogais, Leonardo já apresentava hipótese silábica-alfabética.

Ao trabalhar juntos, minha orientação é que, para fazer uma escrita, deveriam explicar um para o outro o que estavam pensando e negociar “quais letras utilizariam”. Dessa forma, a menina foi induzida a pensar que, para escrever uma sílaba, precisava mais que uma letra, pois seu colega já começava a pensar nessa lógica.

A escrita de listas com palavras dissílabas também foi um desafio do qual Sofia se beneficiou, visto que, do ponto de vista da hipótese silábica, uma palavra dissílaba deveria ser escrita com duas letras. No entanto, as crianças são espertas: quando veem a escrita produzida, percebem que tem algo que não tem muita lógica: como ler uma palavra que só tem duas letras? Quais letras são mais adequadas?

Com Leonardo, a reflexão ficava ainda mais potencializada. Ele a apoiava a pensar em usar letras pertinentes aos sons da palavra. Por exemplo, para escrever PATO, com os saberes de Sofia, a escrita resultou em “AO”. Ela já estranhou usar poucas letras para escrever uma palavra. Com os saberes de Leonardo, puderam produzir AOP, depois PAO e chegaram em PAOT.

Nessa situação o que importava menos era se chegaram ao esperado, mas a reflexão. Sofia precisou considerar as consoantes, que era possível usar mais de uma letra para escrever um mesmo segmento sonoro e em que ordem usá-las. Leonardo refletiu sobre os mesmos tópicos, mas, ao ter que explicar para Sofia, necessitou justificar a razão pela qual acreditava estar correto – o que auxilia a consolidar saberes ou até mesmo precisar pensar em novas justificativas para explicar como estava pensando.

Propostas para avançar com escrita silábica-alfabética

Em paralelo aos momentos em dupla, preparei para Leonardo uma série de desafios utilizando palavras cruzadas. Inicialmente, já oferecia uma lista de palavras para ele encontrar onde elas se encaixavam. Depois, deixei de dar essa lista e o orientei que ele deveria escrever sem deixar nenhum “quadradinho sobrar.”

Outro tipo de atividade que ele adorava era receber palavras com as letras embaralhadas para descobrir a ordem correta. Esse tipo de proposta, para crianças com hipótese silábica-alfabética, os faz perceber que é necessária mais de uma letra para representar um segmento sonoro.

Isso significa que, se eu oferecesse as letras da palavra AMORA embaralhadas, Leonardo poderia, inicialmente, querer escrever “AMOA”. mas, ao sobrar a letra R, teria de tomar uma decisão e pensar onde a encaixar. Uma intervenção interessante seria recorrer a uma palavra estável na lista de nomes, por exemplo, que contivesse a sílaba que precisava ser refletida: “vamos ler no cartaz o nome da colega MARA, que parte do nome dela pode ajudar você a pensar na escrita de AMORA?” Ao responder que a última parte, eu poderia questionar: em que lugar a letra R está? Antes ou depois da letra A?

A escrita de palavras monossílabas nas listas de alimentos para comprar no mercadinho da sala também apresentou ótimos desafios para o estudante. Na escrita da palavra CHÁ, por exemplo, Leonardo colocou a letra A, depois pensou melhor e acrescentou o X – afinal, uma letra apenas era inadmissível para seu nível de conhecimento. A escrita de CHÁ que resultou em “XA”.

Escrever PÃO foi ainda mais desafiador, pois a sílaba nasal exigiu aprofundar a reflexão. Leonardo colocou a letra P e ficou pensando por alguns segundos, até adicionar a letra E, produzindo “PE”, que depois se tornou “PEU” e chegou em “PEAU”. Mais uma vez, o que importa nesse momento é essa desestabilização da escrita silábica, posteriormente, apresentei outras palavras que continham ‘ÃO’, até mesmo outra que tinha a sílaba completa que precisava na composição como a do distrito “Capão Redondo” e a reflexão continuou.

Estratégias didáticas na alfabetização

Para cada atividade mencionada, fiz muitas intervenções: boas perguntas para fazerem as crianças pensarem, pedi que lessem o que escreviam (para que justificassem a escrita e entender o que estavam pensando a respeito do sistema de escrita), propus novos agrupamentos, explorei palavras estáveis para os ajudar na hora de escrever, ensinei como usar o alfabeto autonomamente para procurar a letra ou a grafia da letra que solicitavam, entre outras ações.

A respeito desse último ponto, muitas vezes a criança nos pergunta: “qual é a letra P?” ou “acho que tem a letra P nessa palavra, mas não sei escrever”. Nem sempre lembram da grafia da letra que julgam pertinente a palavra. Neste momento, temos duas saídas: ir até o alfabeto e apontar dizendo qual é a letra P ou pedir que o estudante leia o alfabeto até chegar na letra que procura. Qual dessas alternativas parece mais interessante? Se você pensou na segunda, acertou, pois se cada vez que precisar descobrir como se escreve uma letra seu estudante depender unicamente de você, sua autonomia para aprender, de certa maneira, está sendo prejuficada. Ora, se todos os dias lemos o alfabeto com a garotada, elas sabem a ordem de cor. Por que não usar isso a favor da aprendizagem? Inclusive, podemos deixar um colado na capa do caderno para esses momentos, para que elas não precisem recorrer ao alfabeto de parede o tempo todo.

Essas ações resultaram que na próxima sondagem os três estudantes usados como exemplo chegassem no seguinte diagnóstico: Geovanna apresentou na uma hipótese de escrita silábica com valor sonoro convencional; Sofia, silábica-alfabética; e Leonardo, uma escrita alfabética. No final do ano, todos eram alfabéticos.

Vamos voltar agora para o cenário que mencionei no começo do texto: e se eu tivesse imaginado que os três estudantes possuíam os mesmos saberes sobre o sistema de escrita? E se eu pensasse que tinham pouco experiência com a cultura letrada a ponto de não conhecerem nem letras e começasse as primeiras semanas ensinando a letra A, nas próximas a letra B e a assim por diante gradualmente? Como teria sido o avanço se eu tivesse oferecido as mesmas atividades sem nenhuma adequação ou intervenção?

Referências para apoiar seu planejamento

Há um artigo escrito pelas professoras Diana Grunfeld e Claudia Molinari em a respeito de uma pesquisa que realizaram em duas salas de crianças de 5 anos na Argentina – disponível aqui em espanhol. Em uma das turmas, as crianças participavam de uma proposta baseada em atividades de motricidade, ensino progressivo de letras e cópia de palavras. A outra, tinha atividades em que a escrita tinha um propósito, os estudantes refletiram sobre suas escritas, eram convidadas a aprender a ler lendo, recebiam informações de seus colegas em agrupamentos, ou seja, atividades semelhantes com as quais trabalhei com Geovanna, Sofia e Leonardo.

O resultado no final do ano foi que a segunda sala alcançou níveis de escrita mais avançados e utilizavam procedimentos mais elaborados que a primeira turma, cujas atividades giravam em torno de apresentação de letra por letra do alfabeto gradualmente, com propostas voltadas para a motricidade e cópia.

Os resultados dessa pesquisa vieram ao encontro do que eu já estava percebendo em minhas salas de alfabetização, mas me ajudou a obter maior segurança em relação ao meu planejamento – além de me apresentar mais estratégias para incorporar no dia a dia.

Sempre procuro ler artigos que apresentem estratégias didáticas que possam me trazer dicas de como proceder. Essa tem sido uma estratégia de autoformação que tem me ajudado ano a ano com minhas turmas, além de, claro, participar da formação continuada promovida na minha escola e em outras instâncias.

Antes de ir, compartilho com vocês para que se juntem a mim nesse potente percurso de estudo que pode alavancar o processo de alfabetização em sua turma.

Por: Nova Escola