Como incluir culturas afro-brasileiras e indígenas em diferentes componentes curriculares

Publicado por Sinepe/PR em

É possível trabalhar as relações étnico-raciais para além das aulas de História e práticas são mais assertivas com entendimento sobre a educação decolonial e antirracista

Desde que as leis 10.639 e 11.645 foram aprovadas (em 2003 e 2008, respectivamente), ficou determinada a obrigatoriedade do ensino de histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas em todos os componentes curriculares da Educação Básica. Esse compromisso de ampliar os saberes da escola, incluindo a colaboração de todos os povos presentes na formação do país, foi um passo importante para fortalecer também uma Educação que se propõe a ser decolonial e antirracista. Mas o desafio é grande ainda hoje, tantos anos depois. Afinal, antes, o predomínio era do que se trabalhava em sala de aula sobre os colonizadores europeus, a versão deles e sobre eles.

De acordo com Lavini Castro, professora de História do Ensino Fundamental e Médio nas redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro e idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas, os currículos ainda apresentam o pensamento cultural/civilizador europeu como exemplo universal para a humanidade que, na verdade, é muito diversa e não pode ser explicada unicamente pela história de experiência europeia.

“Contudo, as interpretações feitas ao longo da história classificaram o pensamento europeu como racional, científico e contribuidor, enquanto os pensamentos dos outros povos foram classificados como inferiores e sem possibilidades de contribuição”, diz Lavini, que é colunista de NOVA ESCOLA. No artigo O que é e como construir um currículo decolonial?, de sua autoria, Lavini complementa que “o elemento racial branco foi interpretado como o ‘eu’ ideal a ser seguido, enquanto os demais grupos e seus saberes não foram valorizados na lógica binária moderna como contribuidores da diversidade”. A dificuldade de enxergar as potencialidades e as contribuições de outras etnias contribui para a ausência desses saberes na composição dos currículos escolares. “Às vezes, não enxergamos determinados grupos como aqueles que contribuíram para as ciências porque eles não constam nos conteúdos trabalhados pela academia. Mas, justamente quando se tem essa ausência, é que se faz necessário garantir a visibilidade desses grupos”, analisa.

Para a educadora, a mudança na percepção sobre a importância das relações étnico-raciais e de adoção de uma educação decolonial está ligada à formação dos professores na universidade. “Inicialmente, o problema aparece na sociedade, chama a atenção e entra na academia. Só, então, favorece uma formação curricular adequada”, ela explica. Quando se tem a mudança da formação curricular, aí sim o professor que nem iria passar pela discussão sobre Educação orientada pelas relações étnico-raciais terá uma disciplina obrigatória no Ensino Superior. “É assim que ele começa a enxergar a importância da temática”, avalia Lavini.

De acordo com ela, essa formação na graduação ajudaria educadores a não caírem no erro do estereótipo, da romantização ou da folclorização ao tratar das contribuições negras e indígenas. “Às vezes, o docente até tem boa intenção, mas não teve formação para que a boa intenção possa ser colocada de maneira apropriada na escola”, explica.

Atividades sobre racismo e mídia

Para a professora Gina Vieira Pontes, da rede pública do Distrito Federal, é essencial que o docente pense em uma Educação que faça sentido e colabore para que o sujeito tenha um pensamento crítico sobre sua realidade e entenda até mesmo relações de poder. Gina acredita também que é necessário pensar a aprendizagem como um processo atravessado por questões como gênero, raça, classe social e até mesmo território geográfico.

Considerando que a análise de notícias, fatos e opiniões é uma habilidade presente desde os anos iniciais na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Gina sugere que o professor apresente diferentes reportagens jornalísticas para que os alunos analisem títulos, imagens e como os fatos são abordados. “Assim, a turma tem a possibilidade de notar nuances em situações que acontecem com pessoas de diferentes cores de pele”. Por exemplo, quando um estudante branco é encontrado portando drogas, a imagem dele geralmente é preservada pela mídia e ele é nomeado como estudante. “Se o mesmo acontece com um estudante negro, ele geralmente tem a foto estampada nos jonais e, mesmo tendo outras identidades, é apresentado como traficante”, diz Gina, que também é pesquisadora na área de análise do discurso crítico.

Ainda na linha de análise de notícias, Naiara Chaves De Carvalho, que leciona Língua Portuguesa e Literatura no CE Rui Barbosa, em Seabra (BA), trabalhou com as os alunos do Ensino Fundamental 2 e do Ensino Médio explorando notícias publicadas sobre o assassinato da então vereadora Marielle Franco (1979-2018). Em grupos, os estudantes fizeram um levantamento de notícias sobre o ocorrido e analisaram como a imagem do negro estava relacionada a notícias ligadas à violência ou à criminalidade.

Naiara também já trabalhou a temática por meio da arte, explorando a leitura crítica de novelas e peças publicitárias. Para isso, iniciou uma das aulas fazendo uma conversa sobre as mídias que os alunos consumiam e chegou ao tema de séries e filmes de super-herói. “Então, a partir daí, fiz perguntas para a turma sobre quem são os protagonistas dessas produções, quais papéis são ocupados pelos negros e qual a história contada”, diz ela.

Depois da discussão, apresentou algumas produções, além das já conhecidas pelos alunos, para que a classe analisasse e, a partir das referências, pudesse criar pequenos vlogues ou podcasts discutindo as comparações. Ela ainda aproveitou para trabalhar a escrita de roteiros e a argumentação, desafiando os estudantes a justificarem suas afirmações. “A escola precisa tocar profundamente nesse tema e fazer com que outras histórias possam ser contadas”, diz Naiara. Gina, professora no Distrito Federal, segue a mesma linha da professora de Seabra e acredita que, além de oferecer o conteúdo obrigatório, abordar essa temática é oferecer outras possibilidades identitárias para os alunos.

Exatas, Ciências e contexto social

Apesar de as leis 10.639 e 11.645 não fazerem referência exclusivamente às colaborações nas aulas de história ou literatura, professores de outros componentes têm, geralmente, muitas dificuldades para aplicá-las, especialmente os que lecionam nas áreas de Exatas e de Ciências da Natureza.

“Essas leis tratam muito da história da literatura em português, porque primeiro é preciso apresentar a história desse povo, as narrativas, as presenças históricas e culturais. Assim, fica parecendo que as temáticas estão mais alinhadas ao grupo de componentes curriculares da área de humanas”, diz Lavini. No entanto, ela reforça que isso não impede o professor de Matemática ou de Química de se preocupar com as relações étnico-raciais e introduzir algumas estratégias ligadas às questões éticas e morais envolvidas. Mas, atenção! Para colocar as leis em cena, não basta usar exemplo de gráfico ou de porcentagem sobre da disparidade salarial entre negros e brancos. “O professor de Matemática precisa pensar não só como um profissional técnico que está ensinando um cálculo, ele precisa atuar como um ser humano que se relaciona na sociedade. Caso contrário, ele vai apenas trabalhar a matemática como pensamento técnico, sem explorar as as relações raciais”, explica Lavini.

África e alfabetização matemática

Outubro está sendo muito importante para Elaine Regina Chagas Santos. Ela está finalizando a formação dos professores da EMEF Professor Antônio Prudente, na capital paulista, sobre o uso do jogo mancala (um jogo de semeadura ou de contagem e captura, que não tem como objetivo estimular a competição e sim a cooperação). Com mais de 200 versões no continente africano, ele consta no Currículo da Cidade: Educação Antirracista: orientações pedagógicas: povos afro-brasileiros, adotado pela Secretara Municipal de Educação de São Paulo.

Após atuar por sete anos na escola como docente de matemática, Elaine participou da formação para relações étnico-raciais da prefeitura e, há dois anos, é professora formadora da Antônio Prudente. Elaine atua com a cultura africana no modo geral, mas em particular com jogos africanos, confecção de mantos com tecidos africanos e com musicalização na área de matemática. “Mesmo não estando em sala de aula, sinto que consigo desenvolver esse trabalho de forma mais ampla, disseminando o currículo antirracista e mostrando para os colegas das diversas áreas do currículo que é possível trabalhar a temática em matemática, ciências e em todas as disciplinas”, diz.

A professora compartilhou, também, que a escola já tem uma forte cultura de jogos de tabuleiro aplicados ao ensino, como o xadrez. Incorporado à prática docente, o mancala tem sido usado para ajudar na alfabetização matemática das crianças. “A dinâmica do jogo ajuda os estudantes na aprendizagem da contagem simples. Às vezes a criança não consegue resolver uma simples operação, mas, com o jogo, faz analogias e sistematizações”, diz Elaine.

Ela conta que a escola recentemente recebeu novos docentes e que todos estão participando da formação para usar o mancala na sala de aula. O projeto já acontece na escola graças ao envolvimento de estudantes multiplicadores. Além de jogar, esses alunos fortalecem a educação antirracista ao participarem de um coletivo negro formado na escola, e do qual Elaine também participa ativamente. “Eles levam o currículo ao pé da letra, disseminando a cultura antirracista, usando o mancala, a música, a realização de debates, desfiles e várias outras atividades”, conta.

Biologia e ancestralidade

Foi por meio de um projeto de etnobotânica que Rosa Maria Duarte Veloso, professora de Biologia, colocou em prática várias atividades decoloniais com alunos do Ensino Médio do Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres, em Pastos Bons (MA). No município, há dois quilombos, Jacú e Cascavel, certificados como remanescentes de quilombo pela Fundação Cultural Palmares.

As limitações estruturais da escola em relação a laboratório, microscópios e demais materiais aliadas ao desejo de inovar para além do ensino dos livros didáticos, levaram Rosa a olhar para o entorno da escola e perceber a potencialidade da biodiversidade local como objeto de estudo. “Pensei: por que trabalhar uma coisa ‘livresca’, se tenho um campo ao lado da escola que podemos visitar? Por que pedir que os alunos só desenhem uma árvore, algo que não gera interação, não garante aprendizagem?”

Localizado em uma área de transição entre os biomas cerrado e Amazônia, Pastos Bons está em uma zona rural. De início, o trabalho de observação teve como alvo as nascentes da região, com um trabalho de mapeamento e análise sobre o quanto elas colaboravam para o abastecimento local. A professora fez várias incursões aos locais com os alunos, o que estimulou um outro momento do projeto: a observação das plantas que formavam as matas ciliares. Nessa etapa, a turma iniciou um trabalho que somou mais de 130 identificações. Parte delas foram agrupadas em um perfil criado pelos alunos na rede social TikTok.

Graças às observações guiadas por Rosa, os alunos avançaram e estudaram sobre introdução de plantas exóticas na região e, ainda, sobre um termo que não era familiar a eles: “cegueira botânica” (quando o conhecimento de muitas plantas locais não é de domínio da maioria).

Para ampliar o estudo, a professora convidou conhecedores locais para falar sobre os usos e as aplicações das plantas identificadas pelo grupo. “Primeiro, chamei um amigo quilombola para que fizesse uma oficina sobre uso de palhas, já que ele faz trabalhos com babaçu e muriti. Ele, então, falou sobre a importância dessas plantas e do uso antigo dessas palhas na região, como para fazer camas”, conta.

Nascida no Piauí, Rosa também compartilhou com a turma sua vivência com a avó, que manipulava plantas para fazer remédios caseiros. Certa vez, ela fez um com catinga de porco, uma planta que ajuda na cura de mal gástrico. Os alunos, por sua vez, lembraram que seus pais, mães e avós também tinham essas produções caseiras, as chamadas garrafadas. E o projeto, então, passou para outra etapa: visitas aos terrenos de quem tinha esses conhecimentos locais de usos de plantas associados à cura.

Com esse projeto, Rosa conta que passou a ouvir dos estudantes que eles se sentiam orgulhosos e valorizados por pertencerem à zona rural agora que conheciam mais sobre a biodiversidade e a cultura associadas às plantas. “A pior coisa que tem é estar na escola e falar de temas descontextualizados para o aluno. Ele não vai se reconhecer na prática nem vai se reconhecer no professor, porque,dificilmente, trata-se de uma pessoa negra ou quilombola. Então, quando eu apresento um professor quilombola, quando chamo um pai quilombola ou um pai rezador, valorizo essas pessoas e explico que são guardiões de saberes ancestrais. E os estudantes passam a reconhecer isso”, conta.

Por: Nova Escola