Conselho Mirim: protagonismo e cidadania na Educação Infantil

Publicado por Sinepe/PR em

A estratégia participativa permite que os pequenos exerçam a cidadania e façam parte das tomadas de decisões da escola e até da comunidade

“Por que essa praça não pode ter vários brinquedos como a que tem ao lado da minha casa?”. Essa foi a pergunta que uma criança de 5 anos fez ao passar em frente a um espaço cheio de mato e entulho, ao lado da EMEI Dona Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. A sensação de que o lugar poderia ser melhor aproveitado também era sentida pelos colegas da Educação Infantil. Como parte de um projeto que envolvia conhecer e explorar o entorno da escola, crianças de diversas turmas passavam em frente à antiga praça, uma vez por semana, para irem à feira do bairro e ficavam espantadas com o abandono que viam ali.

Era o início do ano letivo de 2022 e não demorou para que o incômodo coletivo se tornasse uma das principais pautas do Conselho Mirim da EMEI Dona Leopoldina. Com o apoio dos professores e da gestão escolar, as crianças começaram a imaginar como poderiam melhorar aquele espaço. Juntas, elencaram tudo que acharam imprescindível: brinquedos como balanço e escorregador; campo de futebol e acesso à internet para os adolescentes da escola ao lado; torneiras, casinhas, ração e cobertores para os cachorros que transitavam por lá; bancos para adultos e idosos descansarem; e árvores frutíferas para alimentar quem tem fome, arborizar e dar vida ao lugar.

Pesquisadora e consultora de Educação, Marcia Covelo Harmbach é autora do livro Gestão Democrática: Minúcias, dizeres e fazeres do Conselho Mirim na Educação Infantil e define os conselhos nesta etapa como uma “estratégia por meio do qual crianças exercem a cidadania e a democracia, qualificando suas perspectivas em igualdade com os adultos na tomada de decisões na escola, e explicitam suas vozes além dos muros para pensar sobre a cidade”.

E as vozes dos pequenos da EMEI Dona Leopoldina, de fato, ecoaram para além da escola. Eles pontuaram o que imaginavam para a praça, mas o passo seguinte foi marcar reuniões com o subprefeito da região para que as crianças apresentassem as demandas e contassem como se sentiam em relação ao local. “Elas queriam chamar todos para ajudar e pedir para a prefeitura cortar o mato e colocar os brinquedos. Diziam que se todos auxiliassem, poderiam ter a praça que sonhavam”, lembra a professora Alessandra Arrigoni que, na época, dava aula para dois dos conselheiros. Hoje, ela é uma das responsáveis pelas ações do Conselho Mirim da escola, ao lado de outra professora e da gestão escolar.

A praça, que primeiro era um sonho desenhado, se transformou em projeto arquitetônico que também contou com o apoio da associação de bairro. Por fim, a obra foi concretizada e hoje todos podem usufruir.

“Essa foi uma das situações em que as crianças mais ficaram envolvidas. O fato de participarem dando ideias e escutando os outros, por si só, foi muito enriquecedor para o desenvolvimento delas”, afirma Alessandra.

O direito de participar

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil estabelece seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Para Marcia, de todos os verbos, “participar” é o que exige maior reflexão e trabalho, pois a participação dos pequenos na vida da escola ou da cidade ainda é vista com muita ressalva pelos adultos.

“A primeira e verdadeira condição para que se possa conceder palavra às crianças é reconhecer que são cidadãos de direito e capazes de pensar, contribuir com ideias e apresentar propostas para resolução de problemas”, defende. Esse diálogo, porém, ainda é pouco exercido nas escolas, de acordo com especialista, “pois o adultocentrismo impera nas instituições e, infelizmente, muitos gestores não priorizam o trabalho, de modo a promover a participação infantil nas unidades escolares”. Além disso, Marcia observa que não há investimento na formação dos gestores e educadores para realmente fomentar ações como essas.

Para ela, casos como o da EMEI Dona Leopoldina, onde era diretora até o ano passado, quando se aposentou, são importantes porque, além de garantir que as crianças sejam protagonistas, colaboram para a vivência da democracia, do fazer coletivo e possibilitam transformar sonhos em realidade. “As crianças sonham, acreditam nas utopias, diferentemente dos adultos que passavam cotidianamente pela praça, reclamavam do seu estado, mas nada faziam. O sonho da praça mobilizou muitas pessoas, pois aprenderam para quem reivindicar, assim como o papel de cada um em uma comunidade”, ressalta.

Diálogo com toda a comunidade

Neste ano, devido a uma série de dificuldades enfrentadas pela gestão, a EMEI Dona Leopoldina não pôde formar o Conselho Mirim no início do ano letivo. Somente agora a professora Alessandra e sua parceira estão conduzindo o processo, nos períodos da manhã e da tarde, com rodas de conversas com as crianças de 4, 5 e, também, 11 anos. O intuito é, primeiro, identificar o que elas entendem por participação e como acham que podem colaborar com as decisões da escola. Só depois dessa etapa é que as professoras perguntam quem gostaria de ser conselheiro.

Cada turma tem duas vagas destinadas ao cargo. A eleição é feita dentro da sala: as crianças colocam o nome do seu candidato no papel e depois depositam em uma urna. Os representantes fazem parte das reuniões quinzenais do conselho e têm o papel de levar as pautas discutidas para compartilhar com o restante da sala. Vale ressaltar que, embora não façam parte do conselho, todas as crianças são ouvidas e podem participar das assembleias mensais realizadas pela escola para levantar assuntos que sejam de interesse coletivo.

Em Curitiba (PR), o Conselho Mirim do Cmei Maria Aparecida Buscardin Hartmann, que existe há dez anos, funciona um pouco diferente, embora o objetivo seja o mesmo: garantir a participação democrática das crianças nas decisões da escola. Para implementá-lo, a equipe de professores e gestores primeiro conversa com as turmas de 5 anos para explicar do que se trata e, depois, pergunta quem gostaria de participar. Cada turma pode ter o número de conselheiros que quiser, de acordo com o desejo de participação dos pequenos.

“Essa decisão se deve ao entendimento de que quando estão interessadas, as crianças se envolvem mais. Por isso, deixamos esse número em aberto. Dependendo do assunto que estamos trabalhando, elas mesmas vão às salas, fazem cartazes, falam para os menores e também se reúnem com a gestão. Não tem uma hierarquia, todos têm voz igual, portanto, mesmo as crianças que não participam tanto dão sua opinião na realização dos trabalhos”, conta a professora Rozicleia Souza Carvalho que, pela primeira vez em 16 anos de carreira, tem estado à frente de um Conselho Mirim.

Neste ano, o grupo está trabalhando o Fala, Curitibinha, versão mirim do Fala, Curitiba, um projeto da prefeitura que tem como objetivo ouvir os moradores da cidade sobre as melhorias necessárias em cada bairro. Como o propósito é dar voz às crianças, a iniciativa foi incorporada às ações do Conselho Mirim para que os pequenos possam observar e propor intervenções no entorno da escola.

A partir desse projeto, três temas foram abordados: identidades e relações, cidade educadora e meio ambiente, com vídeos e discussões em sala de aula. “Trouxemos tudo o que podíamos de informação sobre cada assunto, depois fizemos uma votação para que as crianças escolhessem qual tema deveria ser trabalhado dentro da escola”, conta a professora. “Conforme íamos apurando os votos, colocávamos os papéis [votos] embaixo de cada tema para que as crianças menores também pudessem visualizar, acompanhar e entender a votação”, lembra. Por fim, a maioria escolheu o tema meio ambiente.

O próximo passo foi estudar o assunto de forma mais aprofundada. Uma das estratégias para fazer isso foi por meio de uma investigação dentro da própria escola a fim de observar como o entorno estava sendo cuidado, o que não estava bom e precisava ser melhorado.

“Nesse passeio pelo CMEI, as crianças entenderam que meio ambiente não é só árvores, mas tudo que está ao redor delas. Elas identificaram, por exemplo, um vazamento e logo relacionaram ao desperdício de água, encontraram árvores quebradas, papéis no chão e viram que até os brinquedos de plástico utilizados por elas impactam o meio ambiente”, explica Rozicleia.

Outro problema constatado pelos pequenos durante a investigação foi a falta de mais lixeiras dentro das salas, o que logo foi providenciado. Hoje a escola faz coleta seletiva de lixo e resíduos e isso só foi possível graças às discussões encabeçadas pelas crianças. “Muitas disseram que as famílias não faziam a separação do lixo, então, apresentamos o Câmbio Verde, um programa da prefeitura que troca lixo reciclável por alimentos. As famílias ficaram empolgadas e começaram a participar”, frisa a educadora.

Marcia afirma que é importante que pais e responsáveis vivenciem o mesmo processo que as crianças na gestão participativa do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e que entendam que o saber delas não é menor do que dos adultos. “É fundamental a formação das famílias para o diálogo com as crianças, pois não é possível construir um projeto de escola democrática sem a participação das crianças, sem a percepção delas sobre a escola e o território”, reforça.

Sensibilidade para ouvir as crianças

De acordo com Marcia, as crianças apresentam uma forma diferenciada de ser e estar no mundo e exigem que pensemos novas formas de interação, se realmente queremos estabelecer uma experiência de diálogo democrático.

“É preciso aprender a escutar e isso não se trata de uma ação isolada. Escutamos com o corpo, através de sensações, percepções e sentimentos. Para escutar é preciso compreender e processar o que está sendo captado pela audição, ler o corpo do outro, decifrar o que nos fala por meio dos gestos, do olhar, além da verbalização com palavras. A escuta genuína constrói pertencimento, autoria em igualdade com os adultos na tomada de decisões no que diz respeito às crianças”, completa Marcia.

Para a professora Rozicleia, tudo isso impacta diretamente o processo de aprendizagem. Há algumas semanas a escola promoveu um encontro com as famílias e ela leu um texto que falava que escolas não são gaiolas.

“Fomos muito engaiolados por pais e professores por conta de uma cultura que não dava voz às crianças. Ao garantir que elas tenham voz, estamos formando cidadãos mais conscientes, que não terão medo de dar a sua opinião, que escolherão melhor em quem votar, saberão quando falar não, se sentirão livres para se expressar e poderão falar de seus sentimentos e de contextos familiares mais difíceis. Tudo isso reflete no processo de aprendizagem, uma vez que a criança se sente capaz porque foi ouvida”, sustenta.

Como criar um Conselho Mirim na sua escola?

A educadora Marcia Covelo Harmbach dá algumas dicas para implementar um Conselho Mirim na Educação Infantil. As sugestões podem – e devem – ser adaptadas à realidade de cada escola. Confira:
• Envolva toda a comunidade
É fundamental que a equipe gestora discuta com toda a comunidade escolar a importância do Conselho Mirim como prática política de participação e, também, a necessidade de envolver as crianças em deliberações que lhes dizem respeito.
• Conheça o grupo de crianças
Para formar o conselho, é preciso entender o grupo, suas necessidades e o que manifestam através de brincadeiras, diálogos, gestos e outras linguagens que denotam diferentes formas de participação para, então, dar visibilidade às percepções sobre as experiências de vida.
• Apresente a proposta aos pequenos
Promova leituras e rodas de conversa sobre os direitos das crianças. Depois, explique para os pequenos o que é um conselho. Nesta etapa, vale definir quem fará parte de sua coordenação: um educador para conduzir a reunião e outro para registrar.
• Eleja os conselheiros
Após explicar o papel que os representantes exercerão, pergunte quem gostaria de representar a turma e por que gostaria de fazê-lo, garantindo a argumentação. Em seguida, promova a eleição de representantes de turma pelo voto das crianças.
• Promova conversas com todas as crianças
Converse com as crianças da escola, oferecendo tempo para que se expressem, por meio das várias linguagens, sobre sua participação no cotidiano das ações que ocorrem na escola e as decisões que são tomadas. Ouça os pequenos com disposição para defender suas posições em igualdade de condições com aquelas apresentadas pelos adultos e observe atentamente os assuntos que elas revelam nas brincadeiras, no refeitório, nas turmas, transformando-os em temáticas para plenárias.
• Fomente assembleias com questões disparadoras
Conceda a palavra às crianças, realizando reuniões com os representantes com assiduidade (mensal, quinzenal), de acordo com as possibilidades, sobre assuntos de interesse. Os assuntos são discutidos e registrados por meio das várias linguagens, além de um escriba adulto, que registra os diálogos nas reuniões.
• Discuta as leituras realizadas com a equipe pedagógica
Com esse material em mãos, promova discussões com toda a equipe pedagógica sobre os diálogos registrados, as entrelinhas percebidas, as leituras corporais e silêncios, traduzindo a real demanda das crianças.
• Compartilhe as informações com as turmas
É fundamental garantir a participação de todas as crianças nas discussões levadas a cabo e a viabilização de problematizações, construções, ideias da cultura infantil. Por isso, propicie sempre que possível o trânsito de informações entre os representantes e o restante das crianças.
• Dê visibilidade às conquistas das crianças
No caso da EMEI Dona Leopoldina, o resultado é perceptível nos relatos e diferentes registros da participação das crianças e suas famílias. “É observável também nas paredes da escola, que contam ainda melhor o processo de transformação nesses anos de trabalho com o Conselho Mirim, tomando a escuta das crianças como um ato político repleto de poesia. Temos de trabalhar como os artistas: transformar o invisível em visível”, finaliza Marcia.

Por: Nova Escola