Como a Educação escolar indígena pode fortalecer a identidade local

Publicado por Sinepe/PR em

A modalidade cumpre importante papel para o reforço do protagonismo dos povos originários e valorização da cultura, mas precisa ser fortalecida

As cerimônias de formatura dos os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio das escolas na Terra Indígena Potiguara, em Baía da Traição e Mataraca (PB) destoam dos eventos que acontecem em grande parte das escolas brasileiras. A celebração acontece em meio à natureza, em vez de num auditório com alunos no palco para receber o diploma e a comunidade escolar na plateia.

A turma de estudantes indígenas potiguares que encerra o Ensino Fundamental se reúne no meio da mata, no Terreiro Sagrado. E os mais velhos vão para as coroas de areia que se formam no encontro do rio Camaratuba com o mar. Caciques e pajés das aldeias, respectivamente, conduzem a dança do toré e o ritual espiritual. Só depois disso, a equipe da direção escolar entrega os diplomas.

O que acontece na cena descrita acima é um bom exemplo de interculturalidade, conceito que se refere a práticas de intercâmbio entre diferentes culturas e grupos étnicos. E é justamente esse que deve ser o eixo central da Educação Escolar Indígena. “A interculturalidade tem de ser contemplada no projeto político-pedagógico (PPP) das escolas indígenas”, diz Pedro Lôbo, arte-educador indígena e doutorando em educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

O documento norteador das escolas da região também contempla visita a roçados, cultivo de hortas na escola para consumo na merenda escolar e atividades ligadas à cultura, arte e história do povo potiguara da Paraíba.

A adoção de uma Educação “diferenciada, específica e bilíngue”, que une os saberes tradicionais de cada povo às disciplinas curriculares convencionais, é fruto da luta dos povos indígenas pelo direito à liberdade de ensino ao longo de décadas. Essas demandas começaram a se consolidar com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1966.

A partir da discussão levantada com base nesses e outros marcos legais – como o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) e o Plano Nacional de Educação (PNE) – ficou estabelecida a Educação Escolar Indígena (leia o box abaixo).

O que difere a Educação Indígena da Educação Escolar Indígena?

“Quando nos tornamos humanos, temos como função passar o conhecimento para novas gerações. Os povos indígenas foram desenvolvendo uma metodologia baseada na oralidade, na educação da mente, do corpo e da alma. Essa é basicamente a Educação Indígena”, explica o professor e escritor Daniel Munduruku. Enquanto isso, a Educação Indígena está ligada às tradições de cada povo e não precisa necessariamente da escola para acontecer.

A Educação Escolar Indígena é uma reivindicação que surge a partir da articulação e luta de diferentes povos, a partir principalmente da década de 1970. É uma como reação à imposição do modelo escolar ao longo dos anos de “colonização”, denunciada pelos indígenas como tentativa de etnocídio.

Do tradicional para o universal

Na EM Kanata T-Ykua, localizada na comunidade de Três Unidos, em Manaus, a valorização da cultura do povo Kambeba começa pela organização do próprio calendário para o ano letivo. Em vez de seguir a divisão tradicional, orientada pelos meses do ano, os períodos de atividade e recesso ocorrem em sintonia com os ritmos da natureza.

Na época de cheia, reserva-se um tempo das aulas para que os alunos possam aprender a pescar. No período de seca, é a vez da caça. E o mesmo processo acontece com o cuidado com o roçado, da semeadura à colheita. A escola tem o papel de garantir esse tempo para que crianças e adolescentes entrem em contato com os diferentes aspectos da cultura, ainda que as atividades não sejam conduzidas pelos professores.

As vivências do período em campo são ótimos ativadores para explorar temas de estudo de componentes curriculares diversos. “Trabalhamos muito com projetos que partem da valorização dos conhecimentos tradicionais e vão ao encontro de temas universais”, diz Raimundo Cruz da Silva, o diretor da Kanata T-Ykua

No extremo sul da cidade de São Paulo (SP) , a EEI Gwyra Pepo segue a mesma lógica da escola dos kambeba de Manaus. Na escola da capital paulista, a rotina de estudos dos cerca de 300 alunos do povo Guarini Mbya, distribuídos pelas 14 aldeias do território Tenondé Porã, também tem como ponto de partida o modo vida na aldeia.

“As atividades que ocorrem na comunidade são entendidas como conteúdo da escola”, explica Priscila Parapoty Silva, professora alfabetizadora. Ela cita como exemplo os mutirões para construção de habitações. “Depois da realização, o conteúdo é levado para sala de aula a fim de ser usado como tema de estudo e são feitas atividades de matemática ou produção textual”. Segundo ela, na visão indígena, não há sentido em separar vida e escola.

Adequação do currículo e formação

Nos territórios do povo Tremembé, em Itarema (CE), práticas pedagógicas como as dos kambeba de Manaus e dos Guarini Mbya da capital paulista são colocadas em cena mais a fundo ainda. Isso fica claro quando se analisa o investimento em formação de professores indígenas para o trabalho pedagógico intercultural, que é intenso.

A cidade foi a primeira do nordeste a contar com docentes do Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior (MITS), em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC), por iniciativa do povo Tremembé, desde 2006.

As escolas da região cearense passam por frequentes ajustes no currículo. Um desses momentos foi em 2019. A EI Tremembé Maria Venância enfrentava problemas em relação ao desempenho abaixo da média nas avaliações externas gerais. Buscando entender as razões que levaram àquele resultado, a gestão escolar levantou a hipótese de que o problema poderia não estar apenas no ensino, mas na forma como os alunos eram avaliados.

Essa percepção foi compartilhada em reunião com a comunidade, que decidiu não aplicar mais os testes padronizados para as turmas. Foi solicitado, então, junto à secretaria de educação, melhorias no programa de formação continuada e avaliações mais adequadas ao contexto local.

“Hoje, existe uma formação específica para professores indígenas sobre o currículo convencional, oferecida pela Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (Crede). As formações específicas são realizadas no território, buscando o conhecimento dos mais velhos e com produção própria de materiais”, diz Maria Cleidiane Zacarias Santana, coordenadora pedagógica e professora de Sociologia, Educação Ambiental e Libras.

As questões de formação foram presença unânime na lista dos maiores desafios enfrentados pelas escolas indígenas, de acordo com docentes e os especialistas ouvidos para esta reportagem. “A maioria dos nossos professores não têm ensino superior. Desde 2009, lutamos para abertura de graduações interculturais”, diz Raimundo, diretor da Kanata T-Ykua, em Manaus. “E somente este ano, 2023, é que isso aconteceu”, diz ele.

O que Raimundo diz representa bem a realidade geral da formação de professores indígenas do país. Dados do Censo Escolar de 2015 mostram que, do total de 20.238 professores atuando nas mais de 3 mil escolas espalhadas pelos territórios indígenas de todo país, apenas 5.960 tinham formação específica para atuar na área. Além disso, de acordo com o Censo Escolar de 2021, das 3.359 escolas indígenas brasileiras, 30% não têm energia elétrica, 63% não possuem água potável e a internet só chega a 10% das escolas localizadas em aldeias.

Identidade: memória e atualidade

Apesar das dificuldades sobre formação docente, experiências da educação escolar indígena buscam cumprir o papel de fortalecimento da cultura dos povos. Até o início dos anos 2000, por exemplo, o tupi, língua materna dos potiguaras da Paraíba, estava praticamente extinto na região. “A articulação da comunidade fez a demanda chegar à Universidade de São Paulo (USP), que enviou um linguista especializado em tupi”, conta Pedro Lôbo, arte-educador indígena e doutorando em educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

A iniciativa resultou na formação de 15 professores potiguares, que passaram a ser multiplicadores. Assim, o tupi voltou a ser ensinado nas escolas da Terra Indígena Potiguara. Pedro estima que atualmente existam mais de 100 falantes da língua nas aldeias. O número ainda é pequeno em relação ao total de indígenas no local. No entanto, é significativo considerando que a língua não era mais falada por quase ninguém.

Na aldeia Guarani Mbya da capital paulista, ainda que o tupi estivesse vivo na boca dos habitantes, outra tradição estava sendo perdida. O aumento da presença de tecnologias, como a televisão e a internet, estava afastando os jovens do convívio comunitário. “Na nossa cultura, temos de ir para casa de reza todos dias, à tarde. É o momento de os mais velhos passarem conhecimento para os mais jovens. Mas eles não compareciam”, afirma Priscila Parapoty.

A solução foi incorporar atividades realizadas na casa de reza durante o período de aulas. “A escola hoje oferece o conhecimento não-indígena e, na casa de reza, acontece a educação tradicional do nosso povo. Esse equilíbrio é importante”, reforça Priscila.

Se na escola de São Paulo a tecnologia estava desviando a atenção dos costumes tradicionais, na EM Kanata T-Ykua, em Manaus, ela foi utilizada para divulgá-los. Por meio do projeto “Tecnologia e o conhecimento tradicional kambeba”, os estudantes foram convidados a usar as redes sociais para mostrar aspectos de sua cultura. Ainda que não fosse a intenção, a iniciativa viralizou.

O diretor Raimundo Cruz conta que hoje a comunidade tem alunas e ex-alunas influenciadoras digitais. Uma delas, a ativista Tainara da Costa Cruz, foi selecionada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para participar da 27.ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27), no Egito, em 2022. “A internet serviu para potencializar as nossas tradições, virou uma vitrine para a nossa cultura”, diz Raimundo.

Minha aldeia é o mundo

À sua maneira, cada um dos educadores indígenas ouvidos pela reportagem apresenta a ideia de que o ambiente em que as comunidades estão tem o potencial de promover tanto os saberes tradicionais quanto os do currículo comum. Das questões do território, podem surgir projetos de Geografia, como pesquisa de campo e estudo da vegetação e do relevo. Atividades de caça e pesca ensejam assuntos sobre o estudo da fauna e biologia animal.

O conhecimento das plantas medicinais podem ser uma ótima entrada para o estudo da botânica e do uso de diferentes substâncias para o tratamento de doenças. O artesanato, as músicas, as danças e as pinturas corporais fazem a conexão com o componente curricular Arte e com o da Matemática.

“É bom que os alunos conheçam Caetano Veloso, Gilberto Gil. Mas eles também precisam conhecer Válber, professor que é formado em música, e Clara, que é cantora. Ambos fazem parte do nosso povo. É bem-vindo que saibam quem foram Picasso e Van Gogh, mas também precisam conhecer os artesãos e artistas indígenas. E saber que por meio de colares é possível trabalhar com etnomatemática”, diz Pedro Lôbo.

“De onde eu venho, mestrado era inalcançável, não era para indígena”, fala. De acordo com ele, a grande conquista é ver os os estudantes retornando para as terras indígenas com Ensino Superior. “Temos dentistas, veterinários, fonoaudiólogos, enfermeiros… Profissões que antes não eram acessíveis para nosso povo. A educação escolar indígena está ajudando a formar profissionais para contribuir com o bem-estar da aldeia”, finaliza.

Por: Nova Escola