Educação Infantil: desafios e caminhos do planejamento pós-pandemia

Publicado por Sinepe/PR em

Os protocolos sanitários, o acolhimento das famílias e dos saberes infantis e as atividades que conciliam aprendizagens anteriores às novas precisam ser contemplados na rotina para potencializar o desenvolvimento das crianças

“Na volta às atividades presenciais durante a pandemia, quando os pequenos começaram a retornar à escola, notei muitas diferenças no desenvolvimento deles. Fiquei sem chão. O que fazer? Muitos não conheciam cantigas e brincadeiras, outros apresentavam pouco repertório com jogos e pouca habilidade para manipular materiais, interagir e brincar com outras crianças. Havia aqueles que não reconheciam o próprio nome por escrito entre os demais, nem a rotina escolar”, conta Edilane Gomes, educadora de uma turma de quatro anos da pré-escola da EMEI Jardim Camargo, em Venda Nova do Imigrante (ES).

Ela enfrenta desafios semelhantes aos de docentes de todo o Brasil: recebe bebês e crianças pequenas que vivenciaram contextos muito diversos durante a pandemia. Alguns nunca estiveram no espaço escolar ou estão retornando após dois anos.

Apesar do susto inicial, Edilane nota agora, quatro meses depois do retorno às atividades presenciais, um avanço significativo no desenvolvimento da criançada. A chave para isso acontecer foi, com apoio da gestão, considerar no planejamento:

  • o uso de espaços da escola para além da sala do grupo (também chamada de sala de referência);
  • a diversidade de saberes e de necessidades dos pequenos;
  • o que eles tinham aprendido em casa e as curiosidades que apresentaram;
  • a importância da participação da família na rotina escolar e da escola na rotina familiar.

Em especial, o planejamento dessa volta às atividades presenciais precisa levar em conta, com muita sensibilidade, como as crianças estão chegando, suas percepções sobre o mundo construídas no período em que estiveram em casa. “Neste momento delicado, é importante que as múltiplas linguagens, a literatura, o brincar, o contato com a natureza e a relação com as manifestações artísticas – atividades intrínsecas à infância e que nos aproximam de nossa humanidade – sejam o foco do trabalho na Educação Infantil”, orienta Nilcileni Brambilla, formadora de professores e produtora de materiais pedagógicos para a NOVA ESCOLA.

Tendo isso tudo como base, é possível partir para aprendizagens mais específicas, como identificar o próprio nome e contar, sempre relacionando todas as vivências oportunizadas com o contexto vivenciado dentro e fora da escola nesse período.

Caminhos para planejar o uso de espaços adequados e seguros
Depois dos dois anos da fase mais intensa da pandemia, poder se movimentar livremente e estar em ambientes naturais são dois dos fatores que mais têm apoiado a recuperação da saúde mental e física infantil, como revela um estudo da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Sem contar que estar ao ar livre diminui as chances de contágio pelo vírus.

Mas não é qualquer espaço que serve quando se trata de questões pedagógicas. Evidentemente, dar preferência aos que ficam ao ar livre e permitem o contato com a natureza é essencial. Mas é preciso ir além disso: é necessário escolher com intencionalidade pedagógica. “É fundamental definir quais os objetivos a serem alcançados com a escolha de determinado local. O que queremos que a turma aprenda lá? O que o espaço escolhido tem de potente?”, afirma Ane Gabriela Bernabé, coordenadora técnico-pedagógica da Secretaria de Educação de Venda Nova do Imigrante.

Diferentes configurações dos ambientes da sala do grupo também podem ser usadas não só para evitar aglomerações. Esta é uma estratégia para promover aprendizagens: formando grupos menores, a criançada pode aprender entre si, e, ao mesmo tempo, o docente pode fazer um trabalho mais personalizado, acompanhando menos gente mais de perto, por exemplo. Sobre isso, Ane Gabriela conta que uma professora da rede notou, por exemplo, que parte das crianças não tinha ainda desenvolvido o movimento de pinça com as mãos. Assim, montou dois cantos de brincadeiras de faz de conta com objetos de diferentes tamanhos. “Elas puderam usar pegadores de madeira maiores, como os usados para servir saladas, pregadores de roupa e outros objetos que facilitam a ação para o desenvolvimento dessa habilidade. As características individuais e os níveis de desenvolvimento puderam ser respeitados”, diz ela.

Ainda sobre espaços e materiais, vale lembrar que os pequenos com menos de cinco anos ainda não foram vacinados contra a Covid-19, e, portanto, o cuidado deve ser redobrado. “Os protocolos precisam ser construídos ou adaptados colaborativamente para que todos – professores, funcionários, famílias etc. – tenham clareza da importância deles, os conheçam e ajudem a efetivá-los. A turma inclusive deve participar ativamente desse processo”, diz Nilcileni. E essa questão precisa fazer parte do planejamento da escola, evidentemente.

Em Venda Nova do Imigrante, as escolas municipais de Educação Infantil adotaram o uso de materiais individuais para bebês e crianças (como bonecos, mordedores e blocos), e eles são guardados em caixas com o nome de cada um. Os itens compartilhados (jogos e materiais não estruturados, por exemplo) são higienizados logo após o uso, e a preferência é dada para peças que possam ser limpas com álcool. Por enquanto, alguns materiais ainda são manuseados apenas pelo professor, adaptando a prática a este novo contexto sem perder de vista a garantia dos direitos das crianças.

A valorização do que as crianças já sabem e suas curiosidades
Os docentes precisam mais que nunca de apoio neste momento ímpar de volta às atividades presenciais: é preciso repensar como lidar com o currículo, com a variação de experiências dos pequenos durante a pandemia e com o consequente desenvolvimento deles. “A formação continuada é um dos principais pilares agora. Os educadores precisam ser ouvidos, refletir com o apoio da gestão, que, por sua vez, tem de buscar conhecimentos para suprir o que o grupo pede”, diz Ane Gabriela.

Além do apoio da coordenação pedagógica, os docentes também precisam fazer valer o que as próprias crianças comunicam sobre suas necessidades e o que é significativo para elas. “Mais que planejar atividades, é preciso planejar as escutas da turma neste momento, observando a relação entre os pequenos e os adultos e com os espaços, sempre avaliando o desenvolvimento físico, afetivo e cognitivo deles. Essa escuta atenta do professor para as falas e ações da meninada é que vai orientar a reorganização do currículo e a tomada de decisões na hora de planejar as vivências”, diz Nilcileni, destacando que também é fundamental prever, de forma coletiva, como será feita essa avaliação.

Para começar a costurar o que os pequenos trazem de bagagem com o currículo e com o que os interessa, Edilane, da EMEI Jardim Camargo, entrou em contato com a educadora que trabalhou com o grupo no ano anterior e pediu registros fotográficos das atividades realizadas em casa durante a pandemia. Edilane então montou na sala um painel com as fotos e retomou com o grupo algumas das vivências preferidas deles, como o cultivo de uma horta. “Eu quis valorizar as aprendizagens anteriores e fazer uma transição para o momento presencial”, conta. “Ideias como essa, realizadas junto às famílias, também podem dar um bom indício de experiências que podem apoiar essa transição”, afirma Nilcileni.

Ela também tem promovido rodas de conversa para todos contarem como foi e ainda é a experiência de vivenciar a pandemia, o que faziam em casa, com quem brincavam etc. A partir do que identifica, como pontos de interesse ou habilidades que precisam ser desenvolvidas, Edilane planeja as próximas atividades. Brincadeiras em roda e cantigas, por exemplo, de acordo com ela, são práticas que têm apoiado muito as crianças neste momento de voltar a conviver com os colegas.

Outra ação importante de Edilane para o desenvolvimento integral dos pequenos e que os conecta com novos saberes é a realização de experimentos diversos, como misturas que criam melecas, cores e texturas (confira aqui propostas para fazer meleca de cola e tinta borbulhante). O engajamento da turma da pré-escola da Jardim Camargo foi tamanho que uma atividade que era para ser pontual passou a fazer parte do planejamento semanal de Edilane. Ela explica o que está sendo feito enquanto conversa com os pequenos, e todos são convidados a experimentar, fazer perguntas, levantar hipóteses e comentar o que já sabem sobre o tema, outra forma de a professora avaliar o grupo o tempo todo. Depois, a turma faz algum tipo de registro do vivido, como desenhos de suas percepções sobre o experimento ou um texto coletivo para ficar exposto na sala.

O acolhimento às famílias e aos pequenos
Após tanto tempo em casa, com pouco contato com outras pessoas além do núcleo familiar, somado ao receio de contrair o coronavírus, a adaptação à escola pode ser mais trabalhosa que o comum. Daí a necessidade de um cuidado permanente para promover um ambiente acolhedor e seguro para as crianças e famílias. “Precisamos receber crianças e famílias de maneira acolhedora. Planejar a recepção com uma música ou um momento de leitura, em um espaço aconchegante, por exemplo, é algo que ajuda a aproximar as pessoas”, diz Nilcileni.

Para essa fase, a rede pública de Venda Nova do Imigrante preparou um processo gradativo na Educação Infantil. Nas primeiras semanas, as educadoras atenderam, por apenas duas horas, pequenos grupos de crianças junto às famílias. Todos eram convidados a explorar cantos diversificados com brincadeiras e leitura. Aos poucos, os familiares e responsáveis passaram a deixar a sala, indo para o pátio e voltando para casa. Caso alguma criança não ficasse bem, a escola telefonava pedindo que os responsáveis retornassem. Outra estratégia foi convidar quem estranha a ausência do familiar para ir ao pátio até que se acalmasse e pudesse se juntar à turma novamente. Só depois de adaptados é que todos se reuniram no grande grupo. “Tem de haver um olhar individualizado, porque o tempo é diferente de uma criança para outra”, orienta Ane Gabriela.

Sobre esse olhar mais apurado, respeitar cada um é essencial. Durante as atividades, alguns acabam dormindo porque é o horário em que estavam acostumados com a soneca em casa. Isso não é um problema: basta acomodar quem quer descansar e seguir com a atividade com os demais, até que todos se acostumem com a nova rotina.

Apesar dos desafios, muitas escolas e famílias estreitaram laços durante a pandemia, o que pode auxiliar neste processo de retorno. “Antes, a escola contava para as famílias como estava sendo o desenvolvimento das crianças. Depois, as famílias assumiram o papel de levar as informações para os docentes, e isso foi muito rico. Temos de avaliar o que deu certo no período remoto e dar continuidade [a isso]”, diz Ane Gabriela.

Edilane, por exemplo, se comunicou por meio do WhatsApp com as famílias durante a pandemia. Agora, no planejamento dela, a ferramenta segue sendo usada para conversar, porque percebe a relevância da prática. “A troca com as famílias ajuda em tudo: conhecer melhor cada um, monitorar a frequência, entre outras coisas”, conta.

Como seguir com propostas pedagógicas em casa
Durante o período de atividades remotas, muito se valorizou a participação, os saberes, o cotidiano e a cultura das famílias, algo que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) destaca como basilar para o desenvolvimento das crianças – e que não pode ser abandonado no retorno às atividades presenciais.

“Agora, existe o movimento de voltar para o espaço escolar. Mas não podemos fazer isso sem considerar os saberes que construímos nesse período. É hora de nos apropriarmos de tudo o que aprendemos nos dois últimos anos e potencializar isso na escola”, destaca Nilcileni.

No planejamento docente, ela recomenda valorizar o cotidiano de alimentação e cuidados consigo mesmo, com o outro e com o espaço, além de balancear a proporção de atividades que prezam pelo cotidiano familiar em relação às demais. “Quando vamos trabalhar com hortas, por exemplo, pedimos para os pequenos perguntarem às famílias quais plantas têm em casa, para que servem, quem cuida e como cuida dos vasos. Depois pedimos que contem tudo para os colegas, na escola”, relata Ane Gabriela.

No movimento inverso, Edilane, da Jardim Camargo, também vem envolvendo as famílias nas propostas que realiza na escola. Ela ensina brincadeiras e até os experimentos realizados em sala. “Quando a família amplia em casa o trabalho feito na escola e a escola valoriza a cultura familiar, as crianças aprendem mais e melhor”, diz.

Por: Nova Escola