Como reinventar o ensino na era digital

Publicado por Sinepe/PR em

A partir do ano que vem, o holograma de um professor pode estar ensinando estudantes, de diferentes países, em uma sala de aula virtual, onde eles ficam posicionados em 48 telas, que juntas formam uma grande painel, como no cinema. Suas reações são captadas e analisadas em tempo real para que a efetividade do que está sendo ensinado possa ser medida e quantificada. Muita gente distraída e com sono, por exemplo, pode ser um sinal de que o professor não está conquistando a devida atenção.

Em um outro experimento, um aluno coloca um óculos de realidade virtual e é transportado para um auditório com 10 ou 10 mil pessoas para testar sua habilidade em apresentações. A reação da plateia também é analisada e transformada em dados, assim como os trejeitos do orador, que pode depois observar a performance gravada de seu avatar para melhorar o desempenho.

A sala de aula virtual se chama Wow e funciona na Universidade IE, em Madri (ES). O holograma do professor convidado, que vai poder estar do outro lado do continente, está nos planos da instituição para o próximo ano, assim como o uso de realidade virtual para o treino de apresentações em público. Esses são apenas alguns exemplos de como o uso da tecnologia cresce no ensino no primeiro mundo. Em outros países, os avanços nas escolas e universidades são mais rudimentares, mas também estão acontecendo.

A tecnologia está influenciando a maneira de ensinar e aprender no mundo, criando desafios para a educação em todas as etapas da vida. Para os profissionais, na iminência da automação e da substituição de suas funções por máquinas e robôs, a tecnologia se tornou fundamental para facilitar o acesso e também para despertar o gosto pelo o que se convencionou chamar de ensino para a vida toda (lifelong learning).

Essa foi a base das discussões que aconteceram na conferência EnlighED- Reinventando a educação em um mundo digital, que aconteceu em Madri e reuniu 55 especialistas, de diversas partes do mundo, para falar sobre suas experiências como educadores, empresários e governantes ligados ao ensino. O encontro, organizado pela Universidade IE e pelas Fundações Telefônica e Santillana, aconteceu em paralelo ao South Summit, evento de inovação que reuniu 580 startups, de 70 países, e pelo qual passaram mais de 20 mil pessoas.

“Para uma economia digitalizada precisamos de uma educação digitalizada com novos currículos”, disse a ministra da educação da Espanha, Isabel Celaá. Até 2022, ela lembra que, segundo o Fórum Econômico Mundial, 50% das empresas vão reduzir sua força de trabalho por conta da automação, portanto, é preciso ver quais funções serão demandadas e trabalhar para a construção dessas novas habilidades.

A necessidade de se qualificar ou requalificar é igual para todos em um mundo em transformação e a tecnologia é parte desse processo. Mas no ensino de adultos, ao invés de estar democratizando as possibilidades de aprendizado, ela pode estar aprofundando as diferenças. “Esperávamos que a tecnologia deixasse os sistemas mais inclusivos, mas ela está criando divisões. Pessoas altamente qualificadas usam os recursos disponíveis nos Massive Open Online Courses (Moocs), por exemplo, para aumentar ainda mais suas capacidades, enquanto em países com baixas habilidades, as pessoas não são motivadas a se engajar em nenhum tipo de aprendizado”, diz Montserrat Gomendio, head do Center for Skills da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Montserrat diz que sua instituição está otimista em relação ao futuro das profissões e prevê que, nos próximos anos, apenas 14% dos empregos serão efetivamente extintos e 32% serão transformados. As pessoas vão precisar melhorar o nível de suas habilidades para conseguir emprego. “Elas deverão ter um pensamento crítico, saber resolver problemas complexos, ter adaptabilidade e serem mais criativas”, diz.

Mas essas habilidades podem e devem ser aprendidas desde a infância, o que significa incluir as chamadas soft skills na pré-escola. Em países em desenvolvimento, como os da América Latina, onde ainda há muito o que fazer no ensino básico esse parece um desafio enorme. “No Brasil, estamos no fim da lista do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), ainda temos muitas crianças que não sabem ler ou escrever, mas ao mesmo tempo, temos que desenvolver as habilidades do século 21 porque o mundo não vai esperar por nós. Existe um senso de urgência já que a desigualdade só vai crescer”, alerta Claudia Costin, do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas.

Rebeca Grynspan, secretária-geral da Secretaria Geral Iberoamericana (Segib), lembra que na AL o número de alunos com acesso à universidade dobrou nos últimos anos, mas isso não significa que eles recebem um ensino de qualidade. “Dois em cada três jovens fazem parte da primeira geração que teve acesso à educação, mesmo assim existe uma alta taxa de evasão escolar”, diz. Para ela, todo o ecossistema da educação precisa mudar porque a sociedade responde mais rápido às mudanças tecnológicas do que as instituições.

Rebeca cita o exemplo do Brasil, que tem mais de 100 milhões de usuários no Facebook, e que isso não se traduz no crescimento do ensino on-line. “Precisamos falar de inovação aberta, ter propostas de integração regional e criar um programa como o Erasmus (plano de ação da Comunidade Europeia para a mobilidade de estudantes universitários), que viabilizou o ensino entre países na Europa”.

O presidente do Santander Universidades, Matías Rodríguez, que investiu mais de 1,7 milhão na AL desde 2002, diz que é importante que se incremente o financiamento na região com bolsas de estudo. “Parece que para a política, o investimento de curto prazo prevalece porque é difícil dar atenção a algo que terá efeito em 20 anos.”

Em outros continentes, países que já despertaram para a urgência da educação, para a manter sua competitividade em um mundo digitalizado, já estão colhendo frutos. “Cingapura sempre tem os melhores resultados no Pisa, hoje está sete anos na frente do pior colocado. Um diferencial é que lá os professores passam mais tempo estudando na academia do que dando aulas”, diz Montserrat, da OCDE.

Para poder preparar os alunos, os professores também precisam desenvolver as habilidades requeridas para o século 21. Uma tarefa dos governos e das instituições de ensino. Em muitos países, os educadores até recebem ferramentas tecnológicas para suas classes, mas não são treinados para melhor incorporá-las na sala de aula.

“O aprendizado acontece com treino e experimentação, é preciso ter espaços para que os professores tenham contato com as novas tecnologias. Temos que criar o “learning by doing” para eles”, diz Lucia Dellagnelo, presidente do Centro de Inovação para Educação Brasileira (CIEB). Ela diz que os professores precisam entender o que significam os algoritmos por trás do Facebook ou as implicações legais do ciberespaço para responder aos alunos. “Tudo é muito novo, todos temos o que aprender.”

Para Esther Wojcicki, criadora do método “Moonshot”, que foi introduzido para 700 crianças em Palo Alto, no Vale do Silício (EUA), os professores devem ensinar aos estudantes como extrair informações úteis da tecnologia. Ela diz que os educadores do século 21 são mentores e os alunos devem ser protagonistas para descobrirem o gosto pelo estudo e se transformarem em aprendizes para vida toda. “Os adolescentes precisam de 20% do tempo de aula, ou um dia por semana, para desenvolver um projeto próprio, algo que seja importante para eles.”

Orlando Alaya, consultor de inovação e ex-vice-presidente para mercados emergentes da Microsoft – que foi por anos parte do grupo de executivos mais próximos a Bill Gates -, diz que os novos modelos de ensino, onde a inteligência artificial (IA) pode dar conta das tarefas mais entediantes como corrigir provas, os professores vão ter mais tempo para fazer experiências que realmente importam com os estudantes. “Quando uma IA lê a reação do aluno, ela ajuda quem está dando aula”, diz.

Mas nenhuma IA dá conta do ensino sozinha. Mesmo com todos os avanços em machine learning, em um mundo no qual as pessoas precisam aprender a se relacionar para resolver problemas complexos, a importância do lado humano é indiscutível. Para Fredrik Lindgren, CEO da escola sueca Kunskapsskolan, cuja metodologia prevê a individualização do ensino desde a infância, na era digital é preciso usar as novas ferramentas para ter mais tempo livre para se comunicar com os alunos. “Assim podemos ter um relacionamento de qualidade ”, diz.

A personalização do ensino é um dos benefícios da tecnologia. No ensino superior e profissional, os cursos on-line abriram a possibilidade de se escolher o quê e como estudar. Simon Nelson, CEO da Future Learn, plataforma de educação digital fundada há seis anos, que reúne cursos gratuitos de grandes universidades, lembra que quando os Moocs foram criados muitos achavam que seria um modismo e que eles iriam desaparecer, o que não aconteceu.

“Para suprir a demanda do mercado até 2030, precisaríamos criar 14 novas universidades por semana para atender 25 mil alunos, o que é impossível. Portanto, o aprendizado deve estar no mobile e ser flexível para que se possa aprender em qualquer lugar”, diz Nelson.

MarKus Witte, criador e CEO do Babbel, aplicativo de ensino de idiomas on-line, diz que o segredo para atrair alunos é fazer uma conexão entre o que eles aprendem e o seu dia a dia. “Quando começamos em 2008, pensamos em fazer um programa de línguas simples, com aquilo que a pessoa vai usar em uma conversa na rua”. Mas ele sabe que em algum momento seu estudante vai querer falar com alguém de carne e osso. “As escolas de idiomas tinham medo que roubássemos seus alunos, mas nós apenas os preparamos para ter outro tipo experiência depois em uma sala de aula tradicional”.

Cada vez mais o empenho pessoal na busca por conhecimento vai ser necessário, mas as empresas e os governos devem ajudar a incrementar esse aprendizado. O setor de educação sozinho não consegue ensinar e trainar as novas habilidades na velocidade que o mercado de trabalho demanda. “É preciso aumentar os investimentos por parte dos governos e da sociedade para que mais escolas estejam preparadas para fazer isso”, diz Santiago Iñiguez, presidente da Universidade IE.

Iñiguez diz que para serem inovadoras, experimentais e disruptivas, as escolas precisam também ser menos reguladas. “O melhor caminho seria criar sistemas de acreditação internacionais”, diz. Mas ele ressalta que novos meios de certificação devem incluir escolas recentes e não apenas as já reconhecidas.

Para ele, o uso da tecnologia no ensino é positivo, assim como o uso de algoritmos na seleção de profissionais. O único cuidado ao apostar no machine learning é se certificar de que os criativos e inovadores não ficarão de fora de suas seleções. “Beethoven era surdo e por um critério mais específico poderia ter sido excluído por não ter o perfil indicado para seguir a carreira musical.”
*A jornalista viajou a convite da Universidade IE

Fonte: Stela Campos — Valor Econômico
Data: 10/10/2019