Debate sobre programa ideal de alfabetização no Brasil ignora formação de professores

Publicado por Sinepe/PR em

Meta da área de educação do governo Jair Bolsonaro (PSL), a alfabetização ganhou novo destaque recentemente por causa de um decreto sobre a nova política nacional sobre o tema.

O texto indicou predominância de apenas um método para o país e trouxe poucos detalhes sobre a viabilidade da implementação.

O sucesso da política esbarra, segundo especialistas, no perfil da formação dos professores, considerado deficiente, e no desafio de chegar às escolas, ligadas às redes estaduais e principalmente, municipais de ensino.

Apesar de praticamente universalizar as matrículas no ensino fundamental, o Brasil ainda não garante a alfabetização das crianças. Na última avaliação de alfabetização, de 2016, mais da metade das crianças de 8 anos não alcançaram níveis satisfatórios em português e matemática.

Especialistas e secretários da área defendem que o MEC (Ministério da Educação) não deve impor uma pedagogia e condicionar sua adoção à assistência técnica e financeira. Além disso, há discussões sobre a necessidade de conciliar diferentes metodologias e respeitar a autonomia das redes.

A versão final ficou a cargo do secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim. Ele é entusiasta do método fônico (que concentra a atenção na relação entre sons e letras) e, antes de chegar ao MEC, atacava o que seria a tendência nacional de apostar no método global – que, em resumo, alfabetiza com foco na leitura de textos.

Referência em estudos sobre formação docente, a professora Bernadete Gatti afirma que o senso comum de que professores trabalham com método global, inspirado no construtivismo, não tem sentido.

“O que se constata é que as licenciaturas e pedagogias não têm tido nos seus currículos uma formação adequada em método algum”, diz ela, ressaltando o caráter teórico das formações.

Os termos do decreto da Nova Política Nacional de Alfabetização, publicado no dia 11, dividiram especialistas.

De um lado, houve comemoração sobre uma definição mais clara a respeito do que se entende como alfabetização, o início do processo já na primeira infância e priorização no 1.º ano do ensino fundamental. Esse modelo estaria mais alinhado ao que se faz em outros países.

Praticamente os mesmos pontos são o motivo de discórdia, além da priorização de um método. Para os críticos, por exemplo, uma antecipação da alfabetização pode prejudicar o desenvolvimento das crianças.

Para a consultora em educação Ilona Becskeházy, o decreto é positivo por traçar um plano de trabalho. “Não tem nada ali que eu não tenha visto em materiais de países desenvolvidos”, diz Ilona, que analisou, em doutorado na USP, a experiência do município cearense de Sobral.

“Há preconceito com método fônico por uma questão política. Todos esses princípios que estão no decreto já ocorrem em Sobral. Não se fala em método fônico, mas estão lá”.

O decreto prevê que programas e ações deverão ser fundamentados nos pilares de consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência em leitura oral, vocabulário, compreensão de texto e produção de escrita.

Sobral
Com 200 mil habitantes, Sobral, a 230 km de Fortaleza, tem se destacado em indicadores educacionais. O projeto de alfabetização que nasceu lá foi adaptado pelo governo, atingindo todo o estado.

Lançado em 2007, esse projeto promoveu uma articulação entre estado e municípios, o que colocou os alunos cearenses entre os melhores desempenhos.

Mesmo com o estado entre os mais pobres, cearenses 71% tiveram desempenho em escrita acima do adequado na última avaliação – esse percentual não chega a 50% no Nordeste.

A vice-governadora do Ceará, Izolda Cela, foi secretária de Educação em Sobral e depois assumiu a pasta estadual, de 2007 a 2014.

Izolda não viu problemas na redação do decreto, mas levanta dúvidas sobre a implementação. “A governança é a peça-chave. Mas qual será o papel dos estados? Serão mais um ente federativo ou teriam um papel importante estratégico?”, questiona.

No Ceará, as avaliações, formações de professores e o material estruturado para os alunos são coordenados pelo estado. Cabe às redes municipais criar estratégias e ensinar.

Outro fator foi predominante. O estado definiu em lei que a distribuição do ICMS para as cidades levaria em conta os resultados educacionais.

A educadora Telma Weisz diz duvidar sobre a viabilidade da nova política. “Só vai sair do papel onde não existir nenhum trabalho anterior”. diz. “Pode fazer lista do que quiser [referindo-se aos eixos do decreto], mas o fato é o seguinte: para poder ser realizado em sala de aula, tem que fazer sentido para o professor”.

O texto inicial do decreto havia sido alterado por integrantes do MEC, com anuência de secretários de Educação e do CNE (Conselho Nacional de Educação). Mas, de última hora, a versão final teve nova redação, comandada por Nadalim.

O Consed (que representa secretários estaduais de Educação) afirmou em nota que ainda não tem um posicionamento “porque ainda não foi apresentado o seu detalhamento”.

O MEC não respondeu aos questionamentos da Folha sobre detalhes da política, como previsão de recursos e plano de implementação.

“Tomara que tenhamos acesso antes para ter condição de contribuir. Não foi passado nada e não fomos chamados até agora”, diz Alessio Lima, presidente da Undime (que representa dirigentes municipais de Educação).

Entraves e discordâncias

1) Diferenças entre principais métodos Fônico
Concentra a atenção na relação entre sons (fonemas) e letras para depois chegar à leitura

Método global
Baseado no construtivismo, alfabetiza a partir de leitura de textos e palavras

Como é hoje?
Segundo estudiosos, não há predominância de um determinado método, mas, sim, dificuldades dos professores brasileiros em dominar as referências metodológicas e lançar mão disso para alfabetizar com algum método. O que seria reflexo das deficiências na formação docente.

O que diz o decreto do governo
Enfatiza a concepção do método fônico. Fala em estimular a formação inicial e continuada de professores para contemplar o “ensino de ciências cognitivas", mas o governo não detalha o que será feito

2) O que é estar alfabetizado?
Divergências entre métodos incluem a própria concepção do que é estar alfabetizado. Parte dos especialistas adeptos ao método fônico defende que a compreensão de textos e principalmente a produção de escrita seria um passo posterior ao processo. Por outro lado, pesquisadores mais afinados ao construtivismo entendem a escrita como uma faceta fundamental do processo de alfabetização.

O que diz o decreto do governo
O decreto inclui entre os principais eixos a compreensão de textos e produção de escrita, enfatizando a consciência fonêmica (habilidade de relacionar letras e sons) como o primeiro eixo.

4) Idade certa
Há divergências sobre o momento ideal para o início do processo de alfabetização e sobre a idade certa em que uma criança deve ser considerada alfabetizada. O que reflete a discussão sobre em qual série deve ser aplicada uma avaliação dos alunos (no 2.º ou 3.º ano). Iniciar o processo de alfabetização ainda na educação infantil (antes dos 6 anos) divide a opinião de especialistas.

Como é hoje?
A Base Nacional Comum Curricular coloca a alfabetização nos dois primeiros anos do ensino fundamental. Já o PNE (Plano Nacional de Educação) coloca como idade certa a alfabetização até o 3.º ano. Ainda não há definição oficial sobre a avaliação deste ano, que chegou a ser suspensa.

O que diz o decreto do governo
Prioriza a alfabetização no 1.º ano do ensino fundamental, mas determinada que o processo tenha início já na educação infantil.

5) Implementação
Como a grande maioria dos alunos na fase de alfabetização está nos municípios, é grande o desafio para que a nova política chegue às escolas.

Como é hoje?
Estados e municípios têm definido em regime de colaboração seus currículos, a partir da Base Nacional Comum Curricular. A experiência mais exitosa, iniciada no Ceará em 2007, contempla um protagonismo do governo estadual no comando da política, em parceria com municípios.

O que diz o decreto do governo
A adesão da política é voluntária, mas os instrumentos ainda serão definidos

Fonte: Paulo Saldaña – Folha de S. Paulo
Data: 24/04/2019